Carlos Coé

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Por Roberio Sulz

Durval e Dorival, divertida dupla de oitentões aposentados de Brasília, como já descrevemos em crônica que lhe dedicamos, costumavam matar o tempo sentados na praça de alimentação Conjunto Nacional Brasília, shopping localizado no encontro do Eixo Monumental com os eixos rodoviários norte e sul do Plano Piloto. Não deixavam despercebidos os passos tampouco os trejeitos dos consumidores apressados ou vagarosos, distraídos de sacolas na mão com olhar de paisagem. A dupla notava e arquivava na memória os detalhes que mais lhes chamassem a atenção. Brincavam de identificar o perfume das madames que, mesmo maduras, não relaxavam o exuberante rebolado sobre sapatos com saltos ultra elevados para lhe dar aparência de moçoilas de pernas compridas.

Com mais de meio século vivendo na cidade, Durval e Dorival conheciam ou pareciam conhecer todos e todas transeuntes. Os homens passantes, então, não escapavam:

  • Lá vai o Ramon; fechou a lanchonete, investiu em negócio de lavanderia e faliu.
  • Faliu feio, deve a muita gente, principalmente a agiotas que ainda botam fé na grana da tia dele, dona Florença.

De repente, receberam o abraço ligeiro de Roosevelt que ao se afastar mereceu efusivo elogio como dedicado decano comerciante de produtos e fármacos naturais.

E assim divertiam-se e promoviam diversão aos que paravam para uma prosa ou um cumprimento. Para alguns chatos de conversa repetitiva, enfadonha e desinteressante fingiam-se sonolentos ou compromissados nos próximos minutos.

Carlos Coé era freguês ouvinte assíduo da prosa e dos casos contados pelos dois. Apesar de não aprovar a “zoada” feita à custa de suas desventuras, aboletava-se na mesa da dupla e se divertia com os casos que lhe atribuíam autoria. Segundo ele, tornados verídicos por força da elevada criatividade da dupla.

Figurinha carimbada no Conjunto Nacional, Coé não tinha negócio nem ponto fixo por lá, mas posava como gerente geral do pedaço, cumprimentando todos e abraçando alguns. Conhecia e fazia-se simpático amigo de todos os comerciantes e profissionais liberais instalados naquele centro comercial. Destá que Durval e Dorival sabiam muito sobre sua vida errática, das tentativas de enganação a incautos – especialmente estrangeiros – e de seus entreveros com a sogra, causa de hematomas, engessamentos e até sumiços ocasionais.

Na verdade, quem sustentava Coé, de fato – nunca de direito – com cama, comida e roupa lavada era sua santa esposa, Julinha, um poço de educação, polidez e compreensão. Julinha era funcionária do Tribunal de Contas do DF e sua mãe, Dona Cremilda, do quadro do Senado Federal. Dona Cremilda nunca conseguira engolir Carlos Coé como genro. Nem d’hoje nem d’ontem. Não media circunstâncias para renovar-lhe pública e privadamente o adjetivo de vagabundo. Coé fazia ouvido de mercador para o que considerava pura arenga.

Um episódio, à época, colocara Carlos Coé na berlinda e na boca de Durval e Dorival por um bom tempo.  O infeliz, em suas eternas dívidas de jogo, pedira dinheiro emprestado à sogra, inventando uma história de que Julinha precisava se consultar com um médico espiritualista em Abadiânia de Goiás. A doença seria um terrível segredo que Julinha não queria revelado nem para sua mãe. Aí entrou aquela velha conversa de que ele estava às vésperas de fechar um milionário negócio com o empreendedor Paulo Octávio e, certamente apto a pagar não apenas o empréstimo ora pedido, mas todos os empenhos anteriores. Mesmo sem muito acreditar, a sogra, na dúvida, mas, lembrando ter visto a filha por várias vezes triste e acabrunhada e, ainda sabendo que sua Julinha era capaz de esconder fatos desagradáveis, principalmente doenças, liberou a verba. Para a esposa, Carlos nada falou do diálogo que tivera com dona Cremilda, a sogra, muito menos do novo empréstimo. Quando Julinha viu seus bolsos recheados, ouviu dele que a grana já era adiantamento de um grande negócio por vir.

E lá se foram para Goiás, não para Abadiânia, como pressuposto, mas para Caldas Novas, onde não perdia uma noite fora do cassino. Durval acolheu o casal em seu chalé. Na primeira noite, por sugestão de Dorival, Carlos concentrou apostas no Vermelho 33. Cobra no jogo de bicho, certamente sogra na roleta. Faturou o “pleno” em quatro rodadas e partiu para o pôquer caribenho. As três noites por lá passadas foram suficientes para esgotar todo o capital tomado da sogra. Não sobrou um tostão.

Dona Cremilda terminou sabendo de todo o enredo e chamou Carlos às falas. Quebrou as tamancas com ele. Não faltaram vassouradas, toalhas molhadas, colheradas de pau na cabeça etc. Saiu do entrevero injuriado de galo na cabeça e olho roxo, mais uma vez. Até passar as marcas, recolheu-se a seu quarto e evitou visitas, para não ter que explicar o vexame.

Esse caso deu o que falar. Durval e Dorival exploraram-no à exaustão. Por mais de mês, dava pena ver o pobre Carlos andando apressadinho evitando contato com a dupla.

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico, MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS –  Academia de Letras e Artes do Salvador/BA.  [email protected]