Por Roberio Sulz*
4ª parte/final – No calor da emoção, comprometi-me jamais voltar por ali. Evitaria ver o fim de pessoas que me tocaram na bem-querência e me foram tão amáveis como companhia nas horas sem compromisso. Preservaria na memória a outrora figura de Cleôncio, prestativo sem reservas, bigodinho pontilhado de fios brancos, cabelos ralos em cabeça chata, sempre coberta por simpático chapéu tropical de aba curta, a contar piadas e declamar poemas de cordel.
Dona Detinha lembrada a todo tempo. Primeiro, por sua resiliência ao peso da cruz que a vida lhe impusera, criar um filho carente de cuidados especiais, sob o desgosto do companheiro. Segundo, pela prosa macia que ia desde receitas de doces e salgados até pratos de comida internacional. Enfim, admirada por suas habilidades culinárias, perfeita alquimista a experimentar e acertar combinações de legumes, raízes, temperos locais e texturas alimentares.
Enfim, o Camilo! Tornou-se para mim figura ímpar e inesquecível. Gostava de seu jeito de garotão curioso, carente de atenção e carinho. Humilde sem ser submisso, valorizava as amizades, mais as que lhe faziam conhecer curiosidades da natureza. Enxergava nos amigos atenciosos a extensão da família que nunca tivera. Frustrava-se por não poder sentir Cleôncio como pai e amigo. Guardei no meu imo todos esses sentimentos que me agradavam, mas me doíam quando os imaginava em rota de extinção.
De fato, ausentei-me das missões de trabalho naquela região, fazendo-me substituído por colega de fácil trato.
Mais de uma década se passou, quando por lá voltei, não a trabalho, mas para rever amizades. Tendo viajado em ônibus noturno, cheguei pela manhã, a tempo de tomar o café da manhã, na mesma pensão de dona Odília. Senti-me cheio de graças que me faltavam na grande cidade. Lambuzei-me de fartar nas coisas naturais sobre a mesa do café: aipim quente fumegando, beiju de tapioca, banana da terra frita e cozida, cará, cuscuz, coalhada, queijo de coalho, mamão, melancia, lima, abacaxi, abacate e outras bondades.
Recolhi-me ao quarto, tomei uma agradável ducha fria para espantar o possível sono perdido na viagem. Recompus-me!
Na saída, acomodei-me nas almofadas do sofá de vime do alpendre para, ao estender a vista, admirar e recordar tempos passados naquele lugar. O dia resplandecia com muito sol a brilhar sobre a mata e a relva ainda úmida pelo relento. Recebia da natureza votos de boas-vindas. Tentei, em vão, avistar o Macambira do outro lado da rodovia. Dona Odília percebeu e falou:
- Sei que o senhor gostava muito daquela gente do Macambira. O restaurante fechou faz tempo! Nada há mais o que o lembre. Só escombros. Cleôncio, diabético, hipertenso, magrelo, desparafusado do juízo e com o mal de Parkinson foi recolhido a um asilo para idosos, onde mora num singelo quarto compartilhado com mais três pessoas. Camilo faleceu faz nove anos, após frequentes crises de convulsão epilética resultantes de um tumor no cérebro, diagnosticado por médicos da capital. Dona Detinha também morreu oito meses depois de Camilo, vítima de um dolorido câncer de útero, associado a infecção generalizada derivada de traumas, provavelmente causados pelas agressões físicas de Cleôncio.
Ainda assim, atravessei a estrada e resolvi espiar o que restara do Macambira. Realmente nada que o pudesse lembrar nem seus donos. Tudo desfeito, muito mato em volta. Contudo, notei o vento manso a folhear as sobras de um livro manchado e amassado cheio de figuras coloridas de animais. Imaginei a quem pertencera.
Superei a tristeza ao reencontrar Jorge, Leandro e outros amigos com quem esticamos conversa até a hora do almoço na Tenda da Tia Maura. Prazer enorme em saborear novamente tutu com torresmo de barriga e outras delícias da cozinha mineira! Inda mais degustar famosas cachaças de Salinas!
Resisti ao sono pós-almoço, fiz visita a seu Charuto, tradicional plantador de café e arroz de várzea. Não era mais o mesmo. Padecia de enfisema pulmonar e tinha os olhos borrados por catarata; reconheceu-me a muito custo.
Passei na agência do Banco do Brasil. Gente nova. O gerente meu conhecido fora transferido e aposentado. Mesmo assim, falamos sobre a economia local baseada principalmente na agricultura e pecuária (nada do antipático termo agronegócio!).
O anoitecer permeado de pastelzinho de queijo, cachaça e chope foi no boteco de Jana, robusta filha de índios, cor de amendoim. Sabendo de minha presença na cidade, vieram para a prosa Irineu, Neco, Marão e Cotia, esta já contando dias para aposentar pela Caixa Econômica.
Sono, agora irresistível, enviou-me para a pensão. Neco me levou em seu carro. Nem vi dona Odília, passei direto para o quarto. Banhei-me e, antes de deitar, resolvi ler algo no Novo Testamento à mesa de cabeceira. Abri onde parecia marcado. Surpreendi-me com a foto de Camilo morto no caixão. No verso da foto, mensagem a mim escrita por dona Detinha sob cuidadosa caligrafia informava que Camilo, presumindo sua morte, pediu para ser enterrado com a camisa que lhe presenteara.
Mirei por um bom tempo a foto. Reconheci a camisa branca de riscas pretas. Bateu-me um aperto no peito. Perdi palavras e fôlego até para murmurar. Mas rezei com fé e esperança. Adormeci e sonhei com garrafas de líquidos coloridos, uma grande fogueira produzindo estalos e fagulhas a iluminar um enorme salão circular de terra batida, sem teto.
Nota: qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real é mera coincidência.
*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador/BA. [email protected]