Por Roberio Sulz*
3ª parte – Dona Detinha fez pausa no relato para acender dois candeeiros a querosene (fifós) e complementar o clarão do fogo que se esvaecia. Continuou:
- Camilo, já crescido, experimentou trabalhar como garçom. Ainda hoje, ao perceber a chegada de freguês com jeito ilustrado, veste roupa limpa, avental alto branco, bloco de comanda e caneta na mão e atende com especial gentileza. Esmera-se em cortesia, valendo-se da oportunidade para aproximar, conquistar e garrar conversa. Cleôncio desdenha esse rapapé admitindo-o como mera xaroposa chateação de gente de miolo mole. Por isso, recomenda às garçonetes contratadas – uma só para os finais de semana – que se antecipem a essa abordagem. Mesmo assim, quando não obstruído, Camilo faz questão de servir a mesa e, dependendo da importância que dá e recebe do freguês, substitui a louça, os talheres e as baixelas comuns por peças especiais. Ao contrário de Cleôncio, dou força a esse capricho forrando com toalha branca alvejada o tabuleiro que leva os pratos, talheres e alimentos à mesa.
Dona Detinha ainda se queixou de constantes dores na coluna e no abdômen, o que a forçava muitas vezes a trabalhar sob efeito de analgésicos para não atritar com Cleôncio que interpretava tais dores como falsas e as lamúrias como preguiça e má vontade de trabalhar. Acrescentou que exames médicos recentes, levaram à suspeita de câncer de útero, com consequente recomendação de repouso. Cleôncio virou bicho quando soube desse prognóstico, segundo ela.
Trocamos palavras sobre o projeto de Cleôncio para ampliação do estabelecimento, visto o bom crescimento da freguesia.
Tempo passando, noite avançando, chuva estiando, fogo apagando, concordamos em presumir que Camilo teria dormido e não mais voltaria a nossa conversa naquela noite.
Retornei ao salão. Os fregueses já haviam saído. Selma, a garçonete, também pegara o rumo de casa. Sem dúvida, fizeram o exercício de saltar aqui e acolá em busca de pontos secos esforçando-se na escuridão para achar o pouco alcançável pela vista. A chuva fina marcava o final do temporal, mas não se acabaram de todo os ventos e relâmpagos no horizonte, tampouco enxurradas ainda ativas.
Despedi-me de Cleôncio que, mesmo sob mau humor, abriu um sorriso e prometeu uma sessão de cordel em noite de menor aperreio.
Dia seguinte, no trabalho, após visitas e entrevistas técnicas com colegas, para encurtar o tempo, continuamos as conversas profissionais durante o intervalo de almoço. Fomos à “Tenda da Tia Maura” por ser a mais próxima e preferida. Estabelecimento de tradição mineira, elogiado por muitos em razão de seus pratos como a leitoa pururucada e as boas cachaças de Salinas. Apressadamente concluímos nossa missão bem antes do pôr-do-sol tendo em vista a possível reedição do temporal da véspera previsto pela forte presença de nuvens escuras e pesadas no horizonte.
Antes de chegar à pensão de dona Odília e da chuva, passei pelo Macambira para despedir de Camilo e dona Detinha e na esperança de ouvir Cleôncio e sua brilhante interpretação ao recitar cordéis. Sentamos a uma mesa do salão, compartilhamos algumas doses da infusão de romã – a nossa preferida – e falamos das novidades e de gente da região. Aproveitando a ausência de freguês, Cleôncio começou a declamar o emocionante poema matuto “Eu e Bibía”, o de minha preferência. Camilo, sem freio no juízo, não muito demorou a nos interromper, me abraçar e pedir para que falasse sobre as tanajuras, em incômodas revoadas naquela época do ano. Cleôncio parou sua declamação e, furioso, passou-lhe um severo e altissonoro pito; segurou-lhe pela orelha e, sob xingamentos, despachou-o para a cozinha sob violento safanão do tipo cata-cavaco, bradando: “vá aborrecer sua mãe, traste infeliz e inútil”.
Emudeci-me e amargou-me a boca ao assistir àquela covarde cena. Meio perdido, fui consolar Camilo na cozinha já sentado, em lágrimas e soluços. Dona Detinha administrou-lhe quarenta gotas de dipirona para aliviar-lhe o sofrimento. Falei-lhe sobre as tanajuras para distrair sua dor. Perdi a fome e a alegria. Deixei o local com os olhos a merejar, imaginando a triste atmosfera reinante naquela família.
A chuva em seus primeiros pingos permitiu-me chegar à pensão sem muito molhar. Claramente capiongo e cabisbaixo, sentei-me à cabeceira da grande mesa de refeições da pensão. Indagado sobre o que comer, disse estar sem fome. Resolvi desabafar relatando o fato presenciado no Macambira. Dona Odília ouviu-me aparentemente sem se surpreender. Passou a acrescentar coisas que eu sabia só por menos da metade. Contou que Cleôncio quando embriagado ou talvez até sob sã consciência, maltratava Camilo e dona Detinha com violentas agressões verbais e físicas, socos, pauladas e pontapés, sem a menor reserva ou pudor, na rua, à vista de quem quisesse assistir ao deprimente espetáculo de tortura que protagonizava. Camilo até que tentava proteger a mãe, colocando-se à frente e oferecendo-se ao sacrifício como escudo. Coitado, já perdera dois dentes e ganhara várias cicatrizes na cabeça nessas agressões. As dores na barriga de dona Detinha decorriam das pauladas e chutes recebidos. Concluiu preconizando o breve fim da família e de tudo. Continua na próxima semana.
Nota: qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real é mera coincidência.
*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador/BA. [email protected]