Por Roberio Sulz*
1ª parte – O mormaço calorento de vento preguiçoso que abafou a tarde de repente ganhou rajadas fortes de frio vindo do sul e assustador temporal com trovoadas, relâmpagos e aguaceiro de açoite a assobiar no telhado e provocar bate-bate nas portas e janelas trancadas com travas e taramelas. Passava das oito. Acabara de jantar carne de sol gorda com aipim cremoso regado a goles de coquinho gelado (cachaça curtida no interior de coco seco). Levantei-me e fui até a porta. Pairava no ar o cheiro de terra molhada. Soltei muxoxos de desagrado. Voltei e escorei-me, cotovelo no balcão do bar. Tentei passar a chuva identificando algumas das muitas infusões de cachaça em litros transparentes, sem rótulo, alinhadas nas prateleiras pregadas na parede ao fundo do balcão: romã, cascas de tangerina, anis estrelado, folhas de figo, lascas de coco, jenipapo, gengibre picado, casca de abacaxi, funcho, pitanga, jabuticaba, sementes carnudas de cacau, cachos de semente de aroeira, cravo, canela, hortelã graúdo, capim santo, pimenta-do-reino vermelha e outras que não mais me lembro, inclusive as feitas com cascas, raízes e folhas não facilmente identificáveis. Tinha até uma garrafa com cobra coral afogada. Não apreciava muito aquela “pinga” (coisa ordinária que, pelos bons critérios, não pode ser chamada de cachaça) quando pura, mas sob certas infusões até que desciam sem atrito. Emprateleirados ainda se viam vermutes diversos, uísque nacionais, conhaques populares – dominava o de alcatrão São João da Barra – jurubeba, fernet, underberg, vodca ordinária e alguns licores coloridos.
As prateleiras cobriam toda a parede; só davam espaço a uma abertura de acesso à cozinha e para o trânsito de refeições servidas nas dez mesas no salão, arranjadas cinco a cada lado do corredor central. Retornei à porta. Alguns instantes, olhando e pensando no tamanho de cada pingo da chuva grossa. Hospedava-me costumeiramente na pensão de dona Odília a uns trezentos metros dali, do outro lado da rodovia. O temporal não dava nem ensejava trégua. Embora cansado de viagem, sentia-me prisioneiro da chuva, das poças d’água a esconder lamas e das volumosas enxurradas carregando folhas secas, gravetos, terra e cascalho. A rua tomava aspecto de um furioso córrego barrento. Os dois outros fregueses de tipo rural que também terminavam seu jantar, colocaram seus chapéus e juntaram-se a mim a olhar o tempo. Palitavam os dentes e pigarreavam desconsolados, sem dizer palavra.
Cleôncio andava de um lado para outro, limpando e relimpando as coberturas plásticas transparentes que protegiam as toalhas de pano contra lambanças de comida e migalhas. Deixava escapar forçados pigarros como manifestação de insatisfação com o toró. Blasfemava contra o tempo prevendo a ausência de clientes. Sem a perspectiva de novos fregueses, deslocou Selma, garçonete no atendimento ao salão, para ajudar dona Detinha, nas operações de arremate da cozinha. O que fazia sentido, pois, se dispensada, não ousaria enfrentar as adversidades climáticas lá fora. Para criar no ambiente uma atmosfera descontraída, pensei em lhe pedir para recitar e interpretar algum dos poemas de cordel que ele sabia magnificamente de cor. Mas sua carranca e boca arcada para baixo me recomendaram ficar quieto.
Fiando na intimidade que me ligava aos proprietários do “Bar-Restaurante-Lanchonete Macambira”, ultrapassei o balcão do bar e busquei refúgio na cozinha, juntando-me a Camilo e dona Detinha que se ocupavam em lavar louças, copos, talheres e panelas. Já os havia cumprimentado e abraçado à tarde, quando saltara do ônibus proveniente da capital. Antes de chegar à pensão, fiz uma pausa no restaurante de Cleôncio para entregar a Camilo uma caixa com coisinhas especialmente trazidas para ele: dois livros ricamente ilustrados sobre animais silvestres, um sabonete cheiroso comprado em perfumaria, um par de tênis branco pouco usado e uma linda camisa social quase nova branca com finas listras pretas e punho duplo. Recomendei a dona Detinha que colocasse botões no lugar destinado às abotoaduras.
A cozinha era um vasto cômodo sem divisórias, suficiente para acolher um majestoso fogão a lenha no centro, de chapa dupla para mais de dez panelas simultâneas. Na parede dos fundos, que dava para o quintal, ampla bancada de madeira maciça espessa para apoio e preparo de alimentos. Três grandes pias ladeavam esse balcão de serviços. Prateleiras largas serviam como despensa, guarda-louças, maços de panos alvejados, panelas e utensílios diversos. Num canto, pilha de madeira para queimar no fogão; n’outro, mesas e cadeiras de reserva, dobradas para demanda emergencial. No telhado bem acima do fogão, uma grande telha industrial de plástico ondulada transparente servia de claraboia para, durante o dia, ajudar na iluminação do ambiente. Logo acima do fogão duas varas horizontais finas penduradas no teto sustentavam linguiças, toucinhos e outras carnes temperadas sob defumação.
Ao entrar e saudar a dupla, Camilo interrompeu seus afazeres, lavou, enxugou as mãos e me veio abraçar, desta vez demoradamente soluçando em lágrimas ao agradecer sentidamente os presentes que lhe trouxera. Disse ter experimentado o tênis e a camisa.
- Couberam-lhe como luva, complementou dona Detinha. Continua
*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências biológicas (UnB), MSc. (University of Wisconsin, USA). Membro Correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador/BA. [email protected]