Boró

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Quantas pessoas, neste nosso mundo da superinformação desinformada, saberiam dizer quem foi Newton e Nero? Quem, preocupado em curtir a vida moderna, haveria de se interessar por esse conhecimento?
Incrivelmente, Boró! Um humilde brasileiro que, nos anos setenta, acompanhava sua esposa, Marion, a cursar mestrado na University of Minnesota, nas cidades gêmeas de Minneapolis e Saint Paul, nos Estados Unidos. Boró, pedreiro de profissão e experiência, de pouca cultura, era mudo em inglês. Evitava sair de casa para não passar perrengue de frio, nem de entender e ser desentendido. Matava o tempo dedilhando sua viola, cantando músicas consagradas por Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Silvio Caldas e outros do gênero. Seu talento de seresteiro não denotava qualquer excepcionalidade. Contudo, agradava e era convidado indispensável nos encontros familiares dos brasileiros que por lá residiam. Geralmente estudantes da área da saúde.
Todos na comunidade brasileira local compreendiam as limitações de Boró. Queriam-lhe bem. Permitiam-lhe o tratamento íntimo comum aos colegas, médicos, enfermeiros, dentistas etc. Pedro, pós-graduando em genética médica, era seu mais próximo amigo. Curtia sua companhia e seu jeito de ser. Convidava-o com frequência para acompanhá-lo ao laboratório onde diariamente fazia observações e anotações em populações experimentais com camundongos. Boró se esforçava em prestar colaboração. Sob supervisão, removia animais de um para outro compartimento, limpava gaiolas, ensacava, transportava o lixo para o contêiner externo apropriado etc.
Era nessa convivência de laboratório que o papo rolava solto. Boró provocava risos só pelo seu arraigado sotaque regional. Mineiro, nascido e criado em Itaúna, o muito do mundo que chegou a conhecer, antes de Minneapolis-St. Paul, foi Belo Horizonte.
Boró relatava, com muita graça, as prosas que tinha com seus amigos no Brasil. Um dia mudou de assunto e surpreendeu.
– Pedro, você já ouviu falar de Newton?
– Que Newton? O físico? Aquele famoso, das antigas?
– Esse mesmo! Sabia… ele era um cara mal humorado, grosso, nervoso e cheio de manias. Não topava brincadeira com ninguém. Era mexer com ele e levar o troco. Antes da lei gravidade, criou a lei do “bateu, levou”. Passados uns tempos, deram outro nome complicado a essa lei.
– Caramba, Boró, faz sentido!
– E tem mais. A meninada vivia mexendo com ele, correndo e se escondendo só para ver o homem nervoso. Newton tinha um chicote comprido, como o de Zorro que, de vez em quando, acertava um moleque ousado. Certa vez, os provocadores esconderam-se no alto de um pé de maçã, onde Newton costumava deitar na sombra para descansar. Estava já meio escuro. Newton, míope, nem percebeu a malandragem. Bastou cochilar e um dos moleques de boa pontaria acertou-lhe a testa com uma maçã. Newton ficou fulo da vida. Voltou ao lugar varias vezes, deitava-se até, um dia, receber outra maçã na cabeça. Apalpou o lugar atingido e, pelo tamanho do “galo” formado, comparado com o anterior, conseguiu saber que a fruta antes recebida na testa não caiu por si, mas foi atirada propositadamente por algum meliante. Escreveu seus cálculos e ficou famoso.
Boró contava suas versões com a maior seriedade, ainda que provocasse riso.
Noutra oportunidade, contou como se deu a morte de Nero.
Segundo Boró, Nero era um louco cheio de maldade. Tocou fogo em Roma. Matou muita gente, só para ver o tombo. Cortou a barriga de sua própria mãe para ver de onde havia nascido. Teria gerado muito ódio contra ele. Chegou a um ponto em que quase todos no Império Romano queriam matá-lo. Mas, cadê coragem para fazer isso sozinho. O homem era bem guardado! Resolveram agitar o povo para invadir o palácio. Com o cerco apertando, Nero se viu só, não lhe restando alternativa se não dar fim à sua própria vida. Contudo, considerava o suicídio coisa de gente covarde. Daí, chamou um soldado de sua guarda pessoal e ordenou que ele lhe sangrasse com a espada. Tal pedido nunca havia passado pela cabeça do humilde soldado que, de pronto, se negou ao feito, justificando:
– Não consigo, seu Nero, eu nunca matei uma mosca.
Nero passou um baita pito no pobre rapaz. Chamava-o, aos gritos, dentre outras coisas, de medroso, covarde e incompetente. Ameaçou-o de morte. Lá fora, o povo impaciente gritava: “morte ao Imperador!” Aquilo atordoava Nero, que já era maluco, foi ficando cada vez mais. Voltou ao mesmo soldado e ordenou:
– Já que você é frouxo, cagão, faça o seguinte: pegue a espada, apóie o cabo no chão e segure-a bem firme com a ponta para cima. Pode virar a cara para o lado e fechar os olhos porque eu vou voar nela. O soldado não teve mais como recusar. Fez conforme instruído. Assim se deu o fim de Nero que conseguiu manter, na história, fama de valente e destemido.
Boró contou outras versões que o público saberá um dia. A renúncia de Nixon, a morte de Emiliano Zapata etc.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]