Benedita

434

Por Roberio Sulz*
Dia 13 de abril é dia do Hino Nacional Brasileiro. Não sabia. Aprendi dias atrás com a folhinha do Sagrado Coração de Jesus. Como esse hino traz a mim e a tantos viventes deste país lembranças interessantes e das mais variadas! As formações em fila no pátio da escola, com hasteamento da bandeira, antes de seguirmos para as salas de aula. Os prolegômenos das partidas de futebol, especialmente as da copa do mundo, muitas vezes com hilárias trapalhadas dos sonoplastas. As enfadonhas solenidades de formatura e mesmo às vezes em que, ao participar de movimentos estudantis no Rio, cantava inutilmente o hino nacional para escapar das cacetadas da PE (polícia especial, dedicada a acabar com o coro da moçada).
Contudo, por coincidência cronológica, minha original lembrança do hino nacional remete-me à primeira infância e à querida Benedita, cria não biológica de meus genitores. Ajudava-nos em tudo, da cozinha ao quintal passando por toda a casa. Benedita já era da família fazia tempo quando a conheci ao nascer. Participou ativamente da minha criação. Certamente foi quem me trocou fraldas, me banhou na bacia e me deu comida na boca. Até onde posso me lembrar – talvez tivesse quatro anos – ela preparava um gostoso mingau de tapioca com leite de coco que eu sorvia prazerosamente mamando de pequena garrafa com bico redondo de furo largo. Também não me esqueço de que sempre dormia a ela agarrado, ouvindo histórias, canções de ninar e sentindo o pulsar de seu coração.
Eu e Benedita fomos alfabetizados na mesma ocasião. É que, me achando professor (mania desde pequeno!), passava para ela o que aprendia na Escola Monteiro Lobato, com dona Alice Metzker. Transmiti-lhe, tal qual aprendi, os nomes das letras de nosso abecedário, inclusive com a pronúncia habitual na região: á, bê, cê, dê, e (é, mesmo; não essa patética invencionice paulista de ê), fê, guê, agá, i, ji, ká, lê, mê, nê, o (ó, como deve ser pronunciado; e não ô), pê, quê, rê, si, tê, u, vê, xis, dáblio, ípsilon (ou ipisilone), zê.
Não foi difícil a mim nem a Benedita reconhecer e decorar as letras, bem como relacioná-las a alguma palavra conhecida, como mais tarde ensinaria Paulo Freire. P lembrava pato; C, casa; S, sapato etc. Superada essa fase, aprendemos sem muita dificuldade a soletrar, isto é, a falar as letras e as sílabas por elas compostas, o famoso bê-a-bá. E como facilita soletrar entoando a pronúncia sertaneja do abecedário!
Já na etapa seguinte, que era decompor a palavra em sílabas e soletrar a composição silábica, Benedita mostrou muita dificuldade. Lembro-me de tentar fazê-la soletrar a palavra “caneca”:
– Cê-a ca; nê-é ne; cê-a ca, que palavra forma, Benedita?
– Sei não!
Ainda que repetindo e insistindo várias vezes, destacava o tom das sílabas, mas, ela não concluía. Nem fazendo referência indireta ao objeto:
– Benedita, é a vasilha que você põe café!
– Bule!
– Não!
– Então é xícara!
E a caneca custava a sair. Com muita persistência e dentro de seu ritmo de aprendizagem, ela superou algumas barreiras e terminou conseguindo ler frases simples com palavras corriqueiras.
Tudo que eu absorvia na escola e com pessoas ensinava a ela, inclusive músicas tocadas no rádio. Também aprendi muito com ela.
Ah, sim! O hino que inspirou esta crônica! Benedita gostava de cantar. Porém, do jeito que entendia. As letras das músicas nem sempre encaixavam em seu entendimento. Marcante era como ela cantava o hino nacional: “Ouviram do Ipiranga às margens flácidas/ de um povo herói do bravo rei turbante…”
Quando, na escola, aprendi a letra correta do hino, não consegui figurar nada. Já, pela voz de Benedita, eu me imaginava às margens de um campo de futebol, junto à torcida do time Ipiranga, onde todos reverenciavam um rei com turbante na cabeça. Daqueles orientais cujas fotos apareciam nas revistas.
Na época surgiu uma marchinha de carnaval que dizia: “Ó escocesa, vem comigo/ que eu te ensino a namorar …” Na versão de Benedita era, ainda que sem sentido: “As coceira vem comigo, que eu tossindo a não morar…” E assim, assim, Benedita, além de bondosa e carinhosa, era a alegria na casa. Ressalte-se, em época que não tínhamos televisão. O rádio a pilha só era ligado para se ouvir jogo de futebol, noticiário e a novela Direito de Nascer. Jornais e revistas chegavam com considerável atraso.
Nunca nos fez falta saber sobre os pais biológicos de Benedita. Lá em casa, era tida e amada como irmã.
Creio que outras pessoas, além de mim, achavam Benedita bonita. Seu Olímpio, compadre de meu pai, fazendeiro do Dendê, desde que ficou viúvo, passou a ir muito a Helvécia. Hospedava-se lá em casa. Olhava para Benedita com interesse.
Benedita me amava – tenho certeza. Também me ensinou a amá-la. Tanto que, quando nos deixou para se casar com seu Olímpio, lembro-me de seu demorado abraço e de suas lágrimas a correr nos meus cabelos curtos.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]