Baladeiro de Vilas do Atlântico larga tudo para viver em terras indígenas

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Baladeiro de Vilas do Atlântico larga tudo para viver em terras indígenas

Morador de Vilas do Atlântico, típico putanheiro ou baladeiro, tanto faz. Qualquer alcunha se encaixava perfeitamente no modus operandi de Breno Rocha. Saía de casa no tradicional ‘sextô’ e só retornava perto da hora de trabalhar, na segunda-feira, quase que religiosamente e sem destino. Sexo, drogas e rock n’ roll. “Era uma luta ter notícia dele nos finais de semana. Não atendia telefone, nunca sabia onde estava”, lembra Dona Zezé, mãe de Breno. Ela continua sem conseguir falar direito com o filho, mas desta vez por uma causa mais nobre (e longe também): Breno largou tudo para viver com os povos indígenas Huni Kūi, em Feijó, no Acre. No lugar da vida loka, ele ajuda a aldeia Mē Nia Ibu Isaka a preservar sua ancestralidade, além de defender a mãe de todos os povos nativos: a natureza.

Saudade daqui, além de sua mãe Zezé e irmã Olga, apenas uma. “Sinto falta de acarajé. Muita falta de acarajé”, diz Breno, nos raros momentos que conseguimos falar com ele. “Estamos tentando abrir um poço artesiano aqui e teremos uma cerimônia importante para a aldeia. Estou ajudando nos preparativos, carregando as coisas”, conta, enquanto acha um raro lugar com sinal de internet. No momento em que a luta pela preservação dos povos nativos ganha conotação mundial, principalmente com as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, a história de Breno se torna um exemplo de como é importante valorizar os primeiros habitantes do país. Contudo, até chegar na transformação social, Breno não era um jovem fácil.

“Não era mesmo. A cultura de Salvador é fazer da vida um carnaval e eu fiz isso. Desde muito cedo me viciei com a noite. Com 12 anos já estava em balada, bebendo, enfim. Minha mãe não me dava dinheiro para festa, então até loló eu vendi para sustentar meu vício, já tive até arma apontada na minha cara. Fiz trambique na empresa em que trabalhei, olhe… Sempre fui rueiro. Muito sexo, sempre estava em brega, drogas, tudo”, disse Breno, que completa 32 anos no dia 23 julho. Ele também se envolveu com dois acidentes de carro, mas sobreviveu. “Teve um que resolvi colocar o cinto no caminho. No ‘clique’ do cinto o acidente aconteceu. Sempre estive no fio da navalha”, lembra.

Farra, sexo, drogas e Trivela: Antes do autoconhecimento, Breno Rocha era um errante das noites e do sextô

A virada de chave aconteceu em 2019, justamente após um fim de semana intenso. “Sexo, bebida e drogas, como de praxe. Saí na sexta e voltei na segunda, lembro que perdi até o trabalho no dia. Estava com uma estranha ressaca moral muito grande naquela manhã. Não tinha ninguém em casa, sentei no sofá, senti um toque no ombro e dei um grito, me arrepiei todo”, conta. Ele acreditava ser o seu pai, que morreu quando Breno ainda tinha cinco anos. Desde então, a mãe criou sozinha os dois filhos, num condomínio em Vilas do Atlântico. Breno também estava mais emotivo, pois tinha perdido um amigo recentemente. “Ele saiu para comprar mais cerveja, bateu o carro e morreu”. Mais dois gatilhos também o fizeram repensar o que estava fazendo da vida: a covid-19 e descobrir que seu bisavô era indigena da tribo Fulni-ô, de Pernambuco.

No início da covid-19, Breno trabalhava num hospital particular de Salvador, fazendo manutenção de equipamentos hospitalares. Formado em engenharia de produção, tinha um bom emprego, mas diminuiu suas saídas. Já estava lendo filosofia, livros sobre espiritismo (queria saber quem mexeu no ombro dele), até que, em plena pandemia, decidiu pedir demissão e fazer viagens no estilo mochilão, buscando o autoconhecimento. Nunca mais voltou.

“Foi um choque para mim. Quem imaginaria que uma pessoa como Breno iria fazer esta mudança tão radical? Criei sozinha os dois filhos, éramos muito unidos, sua partida mexeu muito. Não entendi no início este desprendimento tão radical de meu filho. Mas eles crescem e evoluem, né? Foi muita dor, ainda choro escondida de saudade, mas o maior sentimento é o de orgulho. Ele seguiu o caminho dele com muita coragem e um desejo forte de ajudar o próximo. Um caminho de ajudar o meio-ambiente, de proteger os guardiões da nossa floresta”, diz a mãe Zezé, de 64 anos.

Até chegar no Acre, Breno, que já havia abdicado do estilo vida loka, abraçava o minimalismo e fez trabalhos voluntários na Chapada Diamantina, entre outros lugares, como em Alto Paraíso, Goiás. Buscava em centros de umbanda, espiritismo e rituais indígenas sua ancestralidade vinda do bisavô. Em terras goianas, recebeu o convite de ir para Rio Branco, no Acre, onde passou um tempo como voluntário, até visitar a aldeia Mē Nia Ibu Isaka, sua atual morada. Ele acredita que seu antepassado indigena o puxou até lá. “Tenho sangue indigena, isso também mexeu demais na minha busca, caminho e chegada até Feijó. Lá, num ritual, ele finalmente falou comigo”, garante.

Breno está lá há oito meses na aldeia, após convite do pajé. Suas funções são variadas. Como fala inglês, Breno virou intérprete quando pesquisadores e visitantes estrangeiros chegam no local, mais frequentes que os visitantes brasileiros, o que incomoda o baiano.  Atualmente,  ajuda um estrangeiro da Letônia, que também resolveu morar no lugar. Para ele, pessoas de fora parecem se preocupar mais que os próprios brasileiros sobre as causas indígenas.

Os afazeres diários estão incluídos na rotina de Breno, como pesca, comida, cuidar das crianças, entre outras tarefas cotidianas do lugar. A aldeia é simples, mas, segundo o próprio Breno, mágico. Com o dinheiro que sobrou das viagens, Breno comprou porcos e galinhas para a aldeia. Ele também promoveu uma vaquinha coletiva na internet para captar R$ 60 mil. O intuito é comprar mais um barco de emergência,  furar poços artesianos, construir reservatórios para captação da chuva, instalações de placas solares, entre outras demandas. Afinal, defender a natureza não significa ficar longe das tecnologias benéficas para um desenvolvimento sustentável.

“Desde que senti o chamado da floresta, percebi que não precisamos viver com muito para sermos felizes. Somos escravos do dinheiro, dependendo dele para tudo que a natureza já fornece. Nossas necessidades básicas são poucas: uma água boa, um ar puro, alimento, um teto pro sereno, um agasalho e um lugar para fazer fogo e ficar com quem a gente gosta”, conta. “Esta é a felicidade. Eu não sei que ponto da minha vida foi o gatilho da mudança, talvez aquele toque no ombro, as mortes que vi na covid, meus ancestrais indígenas. Mas sei onde estou e minha missão.  Quero viver conforme o que a natureza dá, ajudando a grande mãe e nossos guardiões da natureza. Temos, talvez, a última grande floresta. E estão acabando com ela”, avisa Breno.

Breno disse que a aldeia recebeu com grande tristeza as mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Para o baiano, os indígenas precisam de mais pessoas  ao lado deles e os assassinatos só provam o quanto os povos nativos e a natureza correm perigo. “Aqui esta problemática com garimpeiros é menor e mais silenciosa. Ainda não soube sobre casos graves assim e a aldeia consegue ter uma relativa paz. O que combatemos aqui é a conservação dos costumes ancestrais e os ensinamentos que a natureza dá. A preocupação é que nada disso morra com as igrejas evangélicas, bares e outras coisas do gênero que estão crescendo por aqui. Como todos podem ajudar? As pessoas devem parar de idolatrar o que o mercado vende e passar a idolatrar o que a mãe natureza dá”, disse.

Breno também tenta encorajar quem deseja mudar sua vida pelo bem comum, mas não tem coragem. Ele quer que sua vida e a experiência com a natureza sejam motivos para que mais pessoas larguem a vida imposta pela sociedade das grandes cidades.  “A liberdade é um risco, mas a segurança é uma prisão. Ainda bem que tive a coragem de mudar e conhecer coisas que muita gente nunca conhecerá. Vamos descer do salto, ter coragem e vim para a base da pirâmide. Chega de ser explorado por quem tá no topo. Veja tudo que a mãe natureza dá. As pessoas podem plantar, gerar abundância, se unir, construir comunidades alternativas, apoiar os quilombos e as comunidades indígenas. É possível”, disse.

Breno parece que está inspirando mais gente, pelo menos na sua família. “No início, a família ficou incrédula, os amigos espantados, foi bem difícil aceitar. Há pouco tempo um tio de Breno chegou para mim e disse: ‘sempre tive vontade de fazer o que Breno fez, mas nunca tive coragem’. Minha filha mais nova, de 26 anos, está fazendo engenharia ambiental. Já sabe, né? Daqui a pouco vai querer se picar como o irmão. Aí vou junto. Hoje tenho a consciência de que precisamos mudar não apenas nós, mas o mundo. Isso o Breno me deu. Nossa floresta está acabando e precisamos acordar. Estão matando nossos guardiões da floresta e quem os protege. Vamos ficar parados?” disse Zezé, que alega não temer pela segurança do filho.

“Eu ficava preocupada quando Breno saía aqui à noite para as festas. Ele está num lugar mais seguro que eu. Nós que estamos numa selva perigosa, ele que vive feliz. Lá vejo meu filho aprendendo com nossos ancestrais, com muitas descobertas, sob o cuidado de pessoas que conhecem a floresta, ensina, dá consciência para ele. Nós que estamos em perigo com tanta violência e insegurança. Morro de saudade, é uma dor forte, mas, como disse, o orgulho do que ele escolheu fala mais alto”, completa.

Breno não tem mais motivos para retornar à Vilas do Atlântico, tampouco da vida de festas e baladas. Agora, coisas vazias para ele. Na aldeia, ele vive com simplicidade, mas de forma intensa. Quem quiser acompanhar sua rotina, basta acessar seu perfil no Instagram (@breno.yube). Sempre que acha sinal ele posta alguma coisa legal. Lá também é possível acessar a vaquinha virtual. “Aqui eles valorizam muito a educação das crianças. Os pais acompanham todo o desenvolvimento e ensinam os poderes da natureza. Aqui ainda se cura entrando no mato e trazendo folhas. As mulheres cantam, a energia é única. Todos estão empenhados em manter a tradição e estão conseguindo. Quanto a mim, estou resgatando meu sangue indigena, né? Quem quiser, pode vir! Podem falar comigo”.

Breno não fala em futuro. Para ele, o presente é o que importa. Mas o passado dele, isso ele não nega e diz fazer parte de sua história e aprendizagem, mas prefere deixar lá no passado mesmo. Para quem ainda duvida de sua mudança radical, Breno fez até uma poesia: “Queriam me ver de terno e engravatado. Queriam me ver numa carruagem e num palácio. Queriam me ver disputando e competindo no mercado. Mas disse ‘não’ e escutei minha intuição. Agora estou aqui, andando pelado e cagando no mato”.

Povo Huni Kūi

Segundo a Federação do Povo Huni Kuῖ do estado do Acre (FEPHAC), existem hoje cerca de 14 mil indígenas da etnia Huni Kūi no Brasil, a maioria no Acre. Muitas vezes conhecidos como Kaxinawás, também povoam  a floresta tropical no leste do Peru. A tribo sofreu interferências na época de ouro das seringas, com constantes conflitos com seringueiros. A aldeia onde Breno Rocha mora é a Mē Nia Ibu Isaka, em Feijó, no Acre. O local também adotou um nome em português, chamado de Aldeia São Francisco. O visitante é sempre bem-vindo para vivências e experiências na floresta, como rituais, medicina da floresta, entre outros. Segundo Breno, as visitas mais constantes são de estrangeiros. Por Moysés Suzart /Correio24horas