Por Roberio Sulz*
Parte – II – Já passava de três meses o namoro de Baixinho e Milflores. Sentia-se ele confortavelmente prestigiado. Fazia por onde preservar essa reputação junto à família da namoradinha. Comportava-se como um bom e exemplar rapaz, evitando opor-se ao clima conservador reinante na família.
Contudo, um grilo passara a cantar mais alto em sua mente. Não entendia como pessoas aparentemente liberais, tão descoladas das amarras familiares tradicionais, modernas e de mente aberta, com relação ao namoro da filha, mostravam-se extremamente reacionárias, sectárias e preconceituosas quando o assunto era política e comportamento. Não se cansavam de elogiar Hitler, Mussolini, Plínio Salgado e outros líderes nazifascistas; de enaltecer a aristocracia. Consideravam natural e necessária a existência de classes sociais dominantes e dominadas. Curvavam-se às monarquias ainda restantes no mundo. Consideravam e almejavam o retorno da monarquia no Brasil.
O comunismo, segundo eles, era passaporte para o inferno, um espantalho social e econômico. Viam os comunistas como agentes da desintegração familiar, principalmente da masculinização das mulheres, ao lhes atribuir tarefas pesadas (sujas!?), como obrigá-las a combater em campos de batalha e trabalhar em carvoarias. “Cruéis assassinos de pessoas e da liberdade. No Brasil, financiados pela Rússia e satélites, organizavam-se para usurpar propriedades alheias”.
Tentou domar os grilos de sua cachola expondo as dúvidas a seus colegas de Calabouço, nicho onde se sentia mais seguro e em casa, dado o longo tempo de convivência e conhecimento mútuo. Além disso, considerava mais democrática, social e ideologicamente mais respeitosa a atmosfera proporcionada por seus colegas e amigos.
Contou também que ficara sabendo ser dona Mayla Secretária-chefe do Diretor do DOPS (Departamento da Ordem Política e Social), função semelhante aos modernos chefes de gabinete, com elevado poder de mando. Perfil suficiente para ter um telefone em casa (coisa rara naquela época) e poder para recrutar e manter espiões da vida alheia. Para completar, Baixinho suspeitara ser vítima dessa bisbilhotice quando Milflores, nas conversas informais, deixara escapar dados sobre sua vida, sua família, seus movimentos, mesmo aqueles por ele nunca relatados. Ouviu, inclusive, sobre uma sua colega de escola que o assediaria, sem receber o devido repúdio.
Alípio Mendes, nosso colega mais velho, estudante de Direito, em véspera de graduação, e leitor assíduo de matérias sobre aparelhos e máquinas estatais de informação, levantou a suspeita de que as boas relações de dona Mayla com Baixinho, assim como toda sua condescendência para com o namoro de Milflores poderia ser interesse em transformá-lo em agente do DOPS infiltrado no Calabouço.
Baixinho, embora relutante, chegou a se sentir nesse esquema. Relembrara as duras e constantes advertências de dona Mayla para os perigos decorrentes da convivência com colegas do Calabouço. Para ela, aquele “comedouro” era um “antro de comunistas e perturbadores da ordem trabalhando em tempo integral para fazer a cabeça de jovens incautos”.
De quebra, dona Mayla dizia manter em seu gabinete um valioso acervo de assentamentos sobre os frequentadores do Calabouço. Conversa que se ajustava à suspeita levantada por Alípio. Claro que esse fato não era novidade entre os frequentadores. Havia até quem dissesse saber nome e sobrenome dos comensais espiões.
Apesar de tudo isso, Baixinho, quando sob os carinhos da amada Milflores, esquecia dona Mayla, seu Levy, o DOPS e os colegas do Calabouço, o fascismo e o comunismo. Emudecia os grilos de sua cabeça. Reafirmava sempre para si e par quem quisesse ouvir:
– Vou superando meus medos e dúvidas sob a atmosfera do amor com Milflores.
Certo dia, o tempo fechou no Calabouço. Ganhou força e efervescência um movimento revoltoso interno, por conta da intenção de se aumentar o preço da refeição de dois para dez cruzeiros e transferir a gestão do restaurante para o Ministério do Trabalho. Lideranças estudantis conhecidas e oportunistas não se aquietaram em seus inflamados discursos usando mesas como palanque. Faixas com mensagem de protesto e bandeiras diversas já se achavam prontas a serem desfraldadas em passeata até os ministérios da Educação e do Trabalho.
À frente da turba, bandeiras abriam o caminho. Avenida Beira-mar ocupada. Na esquina com a Avenida Antônio Carlos, policiais da Polícia Especial e da Polícia Montada lançaram-se em fúria contra os manifestantes. Baixinho foi covardemente atropelado por um cavalo montado. Indefeso no chão, agrediram-no com surra de cassetetes. Na sua fuga, ainda foi atingido e queimado na perna pela explosão de uma bomba de gás lacrimogênio.
Sem chance de movimentação, nem de receber atendimento médico na Policlínica dos Estudantes, detiveram-no e conduziram-no a uma delegacia do DOPS, onde, entre beliscões e cascudos foi submetido a torturante interrogado sobre o que não sabia. Nem seu apelo para contatar dona Mayla foi ouvido. Dormiu, com outros presos, sobre o cimento duro e frio.
Semana mais tarde, quando tentou mostrar seus descontentamento e cicatrizes a dona Mayla, não recebeu qualquer alento. Ao contrário, ouviu duras reprimendas por se “juntar a agitadores e subversivos sociais”. E, sem laivos de misericórdia, decretou compulsória e unilateralmente seu namoro com Milflores, advertindo-o para nunca mais dela se aproximar, nem de qualquer membro da família, sob pena de detenção no DOPS.
– Cruz, credo! Benzeu-se.
Baixinho quase ia às lágrimas sempre que passava pelo Largo da Segunda Feira. Tempos da laranja madura na beira da estrada, com marimbondo no pé.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. roberiosulz@uol.com.br