Baixinho e a bolsa

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roberio-sulzSábado à tarde, saindo de um churrasco de congraçamento entre os concluintes do curso de psicologia da Universidade de Brasília, Baixinho seguia pela Av. W-3 Sul, no sentido Norte-Sul, tendo a seu lado Bia, amiga de longa data e de prosa animada. Falavam sobre o curso que Bia orgulhosamente acabara de completar. Principalmente nos moldes oferecidos pela Universidade de Brasília, em tempo integral, com valiosíssima carga experimental, em laboratórios de primeira qualidade.
A chuva fina continuada pedia um programa descontraído no conforto doméstico. Talvez um jogo de futebol pela TV, uma sessão de slides selecionados ou um papo qualquer, regado a licor 45, ou Drambuie. Ao fazer o retorno para acessar a Entrequadra 304/305 Sul, depararam com uma bolsa feminina no asfalto. Certamente escapada de algum automóvel que tivera a porta do passageiro aberta ao fazer a curva ou de alguém que por ali saltara.  Recolheram-na com a natural preocupação de devolvê-la à proprietária. A essa altura, sem dúvida, pra lá de preocupada.
Enquanto Baixinho dirigia, Bia procurava e rebuscava o conteúdo, tentando achar algo sobre a proprietária: telefone, endereço etc. Quase nada encontrou. De pista, apenas um cartão desses coloridos e perfumados que acompanham arranjos florais vendidos em floricultura, com a dedicatória: “Para minha grande amada, Lorena. Que o perfume, as cores e o viço destas rosas, sejam lembranças permanentes de nossos momentos. Beijo doce e carinhoso do Ari”. Misturado aos produtos de maquiagem, desodorante e perfumes, um cartão social de apresentação borrado de pó compacto, de onde Bia leu em voz alta: “Ministério do Trabalho e Previdência Social. Departamento de Fiscalização e Controle de Benefícios. Ariosvaldo Quaresma Dominguez. Diretor”.
Baixinho não se aguentou. Tratou de estacionar e conferir o cartão abrindo largos sorrisos.
– Então o safado, para as íntimas, é Ari?
O cartão era de seu chefe. Aquele com quem mantinha uma eterna rusga, desde o episódio de sua escapada para fotografar o litoral sul baiano e flagrá-lo na companhia de uma piriguete cuiabana de luxo. Mais tarde essa relação pioraria quando percebeu a armação na qual Ariosvaldo tentara envolvê-lo com a corrupta amapaense Lina. Contou a Bia, resumidamente, sua rixa com o chefe. Aproveitou para falar da incompetência de Ariosvaldo para dirigir aquele departamento ministerial de tanta responsabilidade. Para Baixinho, Ariosvaldo não passava de um apaniguado político. Só alcançara seu cargo por indicação política e proteção do Deputado Federal Loureiro Júnior, irmão de sua esposa. Seu cunhado, portanto.
– Eu sei o prédio onde esse malandro mora! Será fácil descobrir o apartamento pelo porteiro. Vamos lá devolver a bolsa.
Mandaram-se para a Superquadra Norte 204. Baixinho ficou no carro. Deixou com Bia a tarefa de devolver o achado.
O porteiro, pelo interfone, anunciou a presença de uma cidadã no piso térreo com algo a ser entregue à esposa do Sr. Ariosvaldo. Pouco demorou. Bia surpreendeu-se ao ver quem se apresentava como esposa do morador. Senhora de meia idade, cabelo em desalinho, trajes esmaecidos, cigarro babado no canto da boca e desajeito no andar. A juízo de Bia, parecia não merecer a dedicatória escrita no cartão da floricultura. Meio confusa, Bia apresentou-se, contou ter achado a bolsa caída num retorno da W-3. Mostrou o cartão social de Ariosvaldo encontrado na valise e explicou que fora aquela a única pista a levar ao endereço. A senhora, entre um pigarro e outro, afirmou não reconhecer a bolsa como sua. Mas, ficaria com ela, assim mesmo. Seu marido poderia ajudá-la a achar a verdadeira dona. Despediram-se educadamente, sem mais conversa.
Baixinho confirmou com Bia ter deixado o cartão da floricultura entre os pertences da bolsa.
Segunda-feira, fora do costume, Baixinho chegou cedo ao trabalho. A sala do chefe, separada da dos auditores por uma divisória envidraçada, apresentava cortinas cerradas e luzes acesas. Denotava gente querendo esconder seus humores. Ariosvaldo assim agia sempre que tinha apertos a debulhar.
Mesmo já passando das oito e meia, a sala do chefe continuava um ventre de dragão, prestes a abortar. Andava continuamente em círculos, segundo sombra projetada na cortina. A fiel secretária Dinalva nem ousava bater na porta. Compartilhava das ilações que permeavam o ambiente. Só Baixinho presumia mais acertadamente o que estaria ocorrendo com o chefe.
De repente, abriu a porta e o diretor se mostrou sem gravata, amarrotado, com feições de tresnoitado ensebado. O pouco cabelo sempre atravessado, de leste a oeste, sobre a careca, agora era uma magra mexa pendente. A barba rala, por fazer, completava o semblante de criatura torturada. E pior, Ariosvaldo era vértice convergente de todos os olhares e do silêncio sepulcral no ambiente.
Chamou Dinalva e pediu que lhe providenciasse férias e passagens internacionais para si e esposa.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]