Parte I – A palavra mutilação tem origem etimológica no idioma latino a partir da terminologia mutilatio, cujo sentido básico transmite a ideia de “ato de mutilar, cortar um membro”, ou, ainda “cortar, truncar ou abreviar as palavras”, provocando um hiato temporal entre as palavras que compõem uma determinada fraseologia ou as partes/elementos que estruturam um determinado corpo. No inglês, geralmente a terminologia utilizada para transmitir a ideia de corte, cujo sentido é essencialmente o mesmo do latim, é cutter. Nesta perspectiva, cutter pode ser traduzido como “cortador”, ou ainda “aquele que corta”, referindo-se a um sujeito que exerce ativamente a tarefa de cortar. Cutting, portanto, sugere uma ação contínua, que acontece na perspectiva de um prolongamento metodológico do transbordamento desse sujeito frente à necessidade de interrupção do objeto através do corte.
Neste sentido, o objeto que recebe o corte, no interior do fenômeno psicopatológico denominado de automutilação não é outro senão o próprio corpo do sujeito, atravessado pela linguagem. Portanto, tornou-se comum, no Brasil, designar de automutilação as ações empreendidas pelos indivíduos cuja finalidade é produzir cortes no próprio corpo, utilizando-se de instrumentos cortantes, pontiagudos ou mesmo incendiários. Todavia, faz-se necessário elucidar que o fenômeno de produzir modificações no próprio corpo mediante utilização de instrumentos cortante e/ou pontiagudos não é peculiaridade da contemporaneidade, pois escritos antigos proíbem terminantemente a produção de cortes no próprio corpo por causa de um cadáver. O livro pentateuco Deuteronômio (capítulo 14, versículo1), demonstra que alguma espécie de automutilação já existia na antiguidade, quando, movidos pela concepção ritualística, indivíduos infringiam a si mesmos doloridos golpes.
Mesmo assim, torna-se necessário reafirmar que o presente artigo não se reveste de um caráter religioso, tampouco seu objetivo é a conversão daqueles que o leem; pelo contrário, busca insistentemente levantar os registros bibliográficos acerca da referida temática, organizando-os historicamente a fim de estruturar-se como documento homogêneo, ainda que heterogêneo nas etiologias. Ademais, não é pretensão esgotar o tema, visto que esta seria uma pretensão permeada de autoengano. Portanto, o objetivo deste pequeno texto é discutir o fenômeno do self cutting numa perspectiva psicanalítica, voltada para a investigação sintomática da angústia, conforme proposta no conjunto da teorização psicanalítica.
Isso explicado, podemos afirmar que na contemporaneidade a prática da automutilação tem se produzido à medida que a angústia avança insistentemente sobre o campo da subjetividade. Desta forma, faz-se necessário que investiguemos as etiologias escamoteadas pelos sintomas evidenciados nesse campo, que instalam um mal-estar no corpo para além da subjetividade; os sintomas emergem na subjetividade mediante as marcas da angústia no psiquismo, transferindo-se para o corpo através dos transbordamentos somáticos, sentidos na pele em forma de cortes que silenciam os gritos desesperados e aliviam o sofrimento. Continua.
*Maurício de Novais Reis
Especialista em Teoria Psicanalítica
Professor de filosofia no Colégio Estadual Democrático Ruy Barbosa