Por Roberio Sulz*
Anésio Pires nasceu na roça. Compunham sua família, além do pai e da mãe, dois irmãos mais velhos e um irmão mais novo, caçula. Os Pires viviam da criação de caprinos, cultivo de mandioca e produção de melaço e rapadura, comercializados com seu Deuzino, dono de um armazém na localidade de Major Isidoro/AL, a duas léguas de distância por estrada carroçável precária.
Suas terras encostavam na cerca da grande fazenda de Cornélio Lameira, destacado produtor de leite do Estado. Com muitos empregados, justificava ter no ambiente da sede, uma escola pública de ensino fundamental dedicada aos funcionários e às famílias das vizinhanças. Foi nessa escola que as crianças Pires aprenderam as primeiras letras e os primeiros números. Seu Cornélio preferia ter seus filhos estudando em Arapiraca, hospedados em casas de parentes.
Diferentemente de seus irmãos que, após conclusão do ensino fundamental, buscavam oportunidades de emprego e estudos na capital e em grandes cidades, Anésio gostava, mesmo, era do campo, da lavoura, da criação de gado e coisas afins. Nesse rumo, tornou-se empregado da fazenda Lameira, cuidando das pastagens, da alimentação e da ordenha do gado leiteiro. Funcionário dedicado e respeitador, tornou-se muito estimado por seu Cornélio e família, considerando-o homem de confiança.
Guardava, por trás da dedicação, amizade e do respeito exibidos, uma disfarçada paixão por Nelinha, linda filha do patrão que fazia pedagogia em Arapiraca. Anésio acompanhava e tinha na memória, os feriados e férias que a trariam de volta à fazenda. Riscava e contava diariamente no calendário da parede os dias restantes para a chegada de sua princesa.
Foi ele quem amansou e adestrou o cavalo Raiol para ser montado exclusivamente por sua amada. Também foi ele quem ensinou o gosto e a arte de montar a Nelinha. Nos dias de sua presença na fazenda, era comum saírem os dois a cavalgarem pelos campos, às vezes tangendo gado e experimentando as brenhas da caatinga.
Levado pelo sentimento de amor, Anésio aprendeu a dedilhar com emoção as cordas de um violão e deixar escapar bonita voz de cancioneiro. Nelinha admirava-o, não apenas como homem do campo, mas, também como seresteiro de agradável repertório. Em Arapiraca, colecionava letras e melodias para cantá-las na varanda do casarão em dueto com Anésio. Especialmente, nas noites frias de junho, sob a luz da fogueira, saboreando licores e petiscos sertanejos.
O destaque e o tratamento diferenciado dado pela família Lameira a Anésio, contudo, gerava inveja n’outros funcionários, mormente em Rick, técnico-veterinário do quadro de empregados da fazenda. Solteiro, achava sua formação acadêmica argumento para peitar as ordens emanadas de Anésio. Sem dizer que também via com desejos mil a filha do patrão.
Seu Cornélio e esposa sentiam no relacionamento de Anésio e Nelinha uma linda fraternidade, regida pelo respeito. Mas não descartavam a possiblidade de um enlace matrimonial.
Sentindo essa atmosfera, Anésio, tomou coragem e disse, sem segredo, a seu Cornélio e esposa que tinha algo muito importante a lhes pedir. Porém, gostaria de conversar sobre o assunto previamente com Nelinha.
Pediu a um peão para, na manhã, seguinte selar Raiol e seu cavalo de montaria, pois fariam, ele e Nelinha, uma esticada maior até perto de Fazenda Nova.
Ouvindo essa conversa e sentindo-se competidor derrotado, Rick armou uma arapuca para Anésio. Chamou-o ao estábulo pela manhã para informar que Raiol, o cavalo de Nelinha, estava doente. Usá-lo naquela empreitada poderia ser fatal. Sugeriu outro animal, dito ser manso, saudável e resistente para tanto.
Anésio, na euforia que lhe corria dos pés à cabeça, aceitou a sugestão. Montados, saíram em prosa descontraída. Relembravam seus tempos de infância: brincadeiras, cantigas de roda, quadrilhas de São João, fogueiras, a incrível obediência de certas vacas etc.
Já bem distantes da sede fazenda, o cavalo de Nelinha abandonou a companhia em disparada mata a dentro, justamente na direção onde Rick, vestindo capa negra e capuz montava uma égua no cio. Nelinha foi atirada ao chão. Rick a estuprou ali mesmo e fugiu em sua égua. Seguindo rastro e sua experiência de campeiro, Anésio chegou a Nelinha, ainda deitada na relva e aos prantos. Abraçou-a com ternura tentando consolá-la. Retornaram ao casarão, explicando o que ocorrera na cavalgada e como se encontraram. Nelinha disse ser o autor do crime um homem escondido sob capa negra comprida e capuz a cobrir-lhe a cabeça.
Seu Cornélio, de pronto convocou os serviços de três seguranças armados para busca do criminoso. Pediu a Rick – logo Rick! – que comandasse a investigação sobre o caso.
Em menos de uma hora, Rick levou ao patrão capa e capuz negros, como descritos, ainda com manchas de sangue, segundo ele, encontrados num baú no quarto de Anésio. Montou a suspeição, dizendo ter Anésio, na cavalgada, desgarrado de Nelinha e açoitado seu cavalo para que ela fosse surpreendida na mata por ele disfarçado para executar o crime.
Nelinha disse não acreditar naquela história. E mais: naquela manhã Anésio usava o perfume Azzaro por ela presentado e o estuprador tinha cheiro de remédio para bicheira de vacas. Aproximando-se e sentido o odor exalado por Rick, não titubeou em afirmar: odor igual ao desse rapaz.
Rick terminou condenado pelo júri popular de Arapiraca.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. [email protected]