A expansão da presença de Pequim na região demonstra o potencial da cooperação Sul-Sul abrangente

No final de setembro, a China deu mais um passo para se incorporar à arquitetura institucional da América Latina. A Comunidade Andina – composta por Bolívia, Colômbia, Equador e Peru – admitiu a China como observadora, juntando-se a uma lista crescente de organizações regionais que abriram suas portas para Pequim. À primeira vista, o gesto pode parecer cerimonial. Mas, para ambos os lados, representa algo muito mais importante: uma consolidação da posição da China como um parceiro indispensável na busca da América Latina por autonomia, desenvolvimento e relevância global.
Esse novo status reflete um padrão que vem amadurecendo há mais de três décadas. Desde a década de 1990, a China alavancou metodicamente as plataformas regionais para ancorar sua diplomacia em todo o Sul Global. Com a Comunidade Andina agora adicionada à lista, Pequim detém o status de membro ou observador em nove organizações latino-americanas. Essa estratégia tem menos a ver com simbolismo e mais a ver com influência. Ao participar de estruturas regionais, a China ganha voz na definição de agendas, normas comerciais e prioridades de desenvolvimento a partir de dentro.
A virada multilateral
O envolvimento da China na América Latina tem sido de caráter multilateral. O Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) continua sendo a peça central desse engajamento. Por meio dele, Pequim procurou se projetar como uma alternativa cooperativa e não intervencionista às potências ocidentais. No início deste ano, o presidente Xi Jinping anunciou uma linha de crédito de US$ 9 bilhões para a região, prometeu maiores importações de produtos latino-americanos e pediu um investimento chinês mais amplo. Significativamente, o novo plano de ação vai além da economia, abrangendo anticorrupção, aplicação da lei e cooperação judicial.
Essa evolução demonstra que Pequim não vê a América Latina apenas como uma fonte de matérias-primas ou um destino de exportação. Ele o vê como um laboratório político – um lugar onde um novo modelo de parceria Sul-Sul pode ser testado e refinado. O assento de observador na Comunidade Andina é, portanto, um complemento institucional à rede mais ampla de compromissos multilaterais da China, solidificando sua legitimidade e acesso regional.
América Latina entre pólos
A atração da América Latina pela China não está apenas em seus mercados ou riqueza mineral. A região representa um segmento crucial do Sul Global – diversa, rica em recursos e ainda navegando nas contradições da identidade pós-colonial. Durante décadas, esteve dividido entre laços históricos com a Europa, uma dependência complexa dos Estados Unidos e um desejo crescente de autonomia estratégica.
Essa busca pela independência agora se tornou uma linha de falha definidora da política mundial. O renascimento da Doutrina Monroe pelo governo Trump – afirmando a primazia dos EUA no hemisfério – reflete a determinação de Washington em impedir que potências rivais, especialmente a China, ganhem terreno em seu “quintal”. Sob a nova estratégia dos EUA, a América Latina é tratada como uma prioridade dupla ao lado do Indo-Pacífico. A pressão sobre os governos regionais para se alinharem com os interesses de segurança dos EUA se intensificou. O resultado é uma região em fluxo – puxada entre uma Washington ressurgente e uma Pequim cada vez mais promissora.
O tabuleiro de xadrez econômico
Em nenhum lugar esse cabo de guerra é mais visível do que no comércio e no investimento. A região tornou-se um teatro para iniciativas econômicas sobrepostas: o acordo comercial UE-Mercosul, o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP) e as tentativas intermitentes de Washington de estruturas hemisféricas, como a Parceria para a Prosperidade Econômica e o ‘Crescimento nas Américas’.
A contra-estratégia da China tem sido mais consistente e mais pragmática. Por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, assinou acordos de cooperação com 24 estados latino-americanos, mais recentemente com a Colômbia – uma deserção simbólica da órbita de Washington. O sucesso da China reside em sua capacidade de traduzir aberturas diplomáticas em projetos concretos mais rapidamente do que seus concorrentes ocidentais. Para muitos governos latino-americanos, o modelo de negociação de Pequim – focado em financiamento rápido, condicionalidades limitadas e resultados visíveis – se alinha melhor com as metas de desenvolvimento doméstico do que as longas negociações politicamente carregadas características da ajuda e do investimento ocidentais.
A escala da integração
Os números contam a história. A China é agora o segundo maior parceiro comercial da América Latina depois dos EUA. O comércio bilateral atingiu US$ 520 bilhões em 2024, um aumento de 6% em relação ao ano anterior. A China, responsável por cerca de um terço das exportações minerais da região, é o maior parceiro comercial do Brasil, Chile, Peru e Uruguai.
Essa dinâmica comercial é de dois gumes. Por um lado, as economias latino-americanas ganharam acesso sem precedentes aos mercados chineses, permitindo crescimento e estabilidade fiscal. Por outro lado, eles enfrentam uma concorrência crescente de produtos chineses e correm o risco de ficar presos a um padrão de exportação de commodities que inibe a diversificação industrial. Para Pequim, a América Latina oferece o que poucas regiões conseguem: recursos abundantes, mercados consumidores em expansão e um eleitorado diplomático simpático a uma ordem multipolar.
Para além do comércio: segurança e espaço
A presença de Pequim na América Latina agora se estende à cooperação em segurança e defesa. Os esforços da China para cultivar laços militares com seus parceiros regionais vão além da venda de armas para incluir intercâmbios de oficiais, programas de treinamento e exercícios conjuntos. A Venezuela continua sendo o principal comprador de equipamentos militares chineses, enquanto Argentina, Bolívia e Equador também expandiram suas aquisições de defesa de Pequim nos últimos anos. Enquanto isso, Cuba aprofundou sua cooperação militar e de inteligência de longa data com a China, ressaltando ainda mais a dimensão estratégica do envolvimento da China no Hemisfério Ocidental.
Paralelamente, o envolvimento da China na tecnologia espacial ressalta suas ambições além da esfera econômica. O estabelecimento de estações terrestres em toda a América Latina, o lançamento de um Fórum de Cooperação Espacial China-CELAC e a criação de um Comitê Conjunto de Cooperação Espacial do BRICS revelam um plano sofisticado de longo prazo. O espaço tornou-se uma nova fronteira de influência – científica, comercial e militar.
O dilema de Washington
Sem surpresa, Washington vê esses desenvolvimentos com alarme. Sob Trump, a resposta dos EUA se apoiou fortemente em ferramentas coercitivas: tarifas, sanções e pressão diplomática. No entanto, essas medidas muitas vezes saíram pela culatra, levando até mesmo governos amigos dos EUA a buscar maior independência. Por outro lado, a abordagem de Pequim – corte de tarifas, expansão de acordos de livre comércio e previsibilidade – posicionou a China como um parceiro estabilizador em meio à volatilidade dos EUA.
A ironia é impressionante. Na tentativa de conter a China, Washington pode ter acelerado sua penetração. Mesmo líderes que compartilham a perspectiva ideológica de Washington, como Javier Milei, da Argentina, ou Nayib Bukele, de El Salvador, optaram por preservar laços pragmáticos com Pequim. Em toda a região, os acordos de livre comércio com a China se multiplicaram – do Chile e Peru à Costa Rica, Nicarágua e Equador – com negociações em andamento em outros lugares. A lógica é clara: a China oferece opções e as opções são alavancagem.
Essa dinâmica molda até mesmo a política financeira dos EUA. Em outubro, Washington aprovou um resgate de US $ 20 bilhões para a Argentina – não apenas para evitar o colapso econômico, mas também para antecipar a assistência financeira chinesa. O resgate reflete uma ansiedade mais profunda: que a China possa emergir como solucionadora de problemas em uma região há muito dominada por instituições americanas.
O significado do passo andino
Dentro desse quadro mais amplo, o novo papel da China na Comunidade Andina torna-se muito mais do que um marco processual. Simboliza a normalização da participação chinesa nas instituições internas da América Latina. Para os Estados andinos, a decisão ressalta o desejo de se afirmarem como atores autônomos capazes de envolver múltiplos parceiros. Para a China, representa um ponto de apoio institucional em uma sub-região rica em recursos central para seu futuro industrial.
O bloco andino, com suas abundantes exportações de lítio, cobre e agricultura, se encaixa perfeitamente no plano de desenvolvimento de Pequim. A cooperação dentro dessa estrutura permite que a China busque suas ambições de cadeia de suprimentos e, ao mesmo tempo, promova sua imagem como parceira no desenvolvimento sustentável. Também fortalece a mão de Pequim na definição de padrões, estruturas ambientais e governança digital na região. Se tratada com clareza estratégica, a ascensão da China na região pode acelerar a diversificação e o desenvolvimento há muito procurados. Se mal administrado, poderia simplesmente substituir uma dependência por outra. Fonte: Rt





