Ajit Pai, o homem que ‘matou’ a neutralidade de rede nos EUA

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Quem é Ajit Pai, o homem que ‘matou’ a neutralidade de rede nos EUA. Classificado por youtuber como ‘pessoa mais odiada da internet’, presidente da ‘Anatel dos EUA’ é alvo de memes e até ameaça de morte por alterar regras da web; mudanças entram em vigor nesta segunda (23)Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC, na sigla em inglês). (Foto: Ethan Miller / France Presse)

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC, na sigla em inglês). (Foto: Ethan Miller / France Presse)

O presidente da “Anatel dos Estados Unidos”, Ajit Pai, é o responsável pelo fim da neutralidade de rede no país, uma medida que entra em vigor nesta segunda-feira (23) e pode mudar a forma como os americanos usam a internet. Sua figura provoca polêmica e já até recebeu ameaças de morte. Ele já foi classificado como a “pessoa mais odiada da internet” pelo youtuber mais famoso da rede e frequentemente é satirizado por memes.

Filho de imigrantes indianos e membro do Partido Republicano, Pai foi escolhido em 2017 por Donald Trump para presidir a Comissão Federal das Comunicações (FCC, na sigla em inglês). Ele integrava o colegiado há cinco anos, colocado lá por Barack Obama para manter o balanço entre Democratas e Republicanos.

Em pouco mais de um ano no cargo, Pai já deixou sua marca e alterou diversas regras no setor de telecomunicações americano. Nenhuma medida, no entanto, despertou tantas paixões quanto retirar as garantias à neutralidade de rede, que forçava provedores de internet a tratar serviços conectados da mesma forma.

Na prática, a neutralidade garante, por exemplo, que mensagens enviadas pelo WhatsApp tenham prioridade equivalente a dados enviados pelo Netflix. Sem isso, provedores podem exigir que consumidores paguem mais para um serviço furar a fila.

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC), é constantemente transformado em meme. (Foto: Reprodução)

Pai da morte da neutralidade

O fim da isonomia na internet não é um movimento isolado de Pai. Faz parte do que ele chama de “toque suave para regulamentação de rede”.

Na mesma linha, ele também liberou as TVs a comprarem jornais regionais sem provar que há concorrência e tomou decisões que, na prática, permitem que provedores que são os únicos a operar em um lugar deixem de seguir um controle de preços.

“Os EUA só estão virando a chave para, em vez de criar uma regulamentação que erroneamente presume que qualquer provedor de conexão está em uma lista impeditiva, passar a focar nossas ações em falhas reais de mercado”, afirmou ele em fevereiro, durante o Mobile World Congress (MWC), maior evento de telecomunicações do mundo.

Com isso, internet banda larga e móvel deixaram de ser serviços de utilidade pública. Passaram a ser atividades supervisionadas pela Comissão Federal do Comércio (FTC, na sigla em inglês), agência que lida com direitos do consumidor e ações anticompetitivas.

Ele jura que só “restaurou o mesmo panorama regulatório que governou a internet por toda sua existência, de 1996 até 2015”.

Mas não é bem assim. Antes da regra existir, a FCC punia empresas de telecomunicação que impediam consumidores de acessar serviços de seus rivais, mas tinha suas decisões revertidas no Judiciário. A razão alegada era a falta de um precedente legal que garantisse a neutralidade de rede. Foi aí que o ex-presidente da FCC, Tom Wheeler, institucionalizou a proteção à neutralidade de rede.

Infográfico explica neutralidade de rede (Foto: Infográfico: Karina Almeida/G1)Infográfico explica neutralidade de rede (Foto: Infográfico: Karina Almeida/G1)

Infográfico explica neutralidade de rede (Foto: Infográfico: Karina Almeida/G1)

A visão de Pai é que o fim da neutralidade e outras medidas regulatórias pró-mercado farão dos EUA o líder global em 5G, quinta geração de internet móvelque promete conectar de carros autônomos a drones.

“Política de espectro [de radiofrequência], infraestrutura moderna e regulações de rede voltadas para o mercado formam o coração da nossa estratégia para cumprir a promessa do futuro com o 5G.”

Nessa linha, ele já trabalha na redução de obrigações ambientais para empresas instalarem infraestrutura de rede, como cabos de fibra ótica. Ainda este ano, a FCC vai licitar várias faixas de frequência, como as de 3.5 Ghz e 28 Ghz, já de olho no 5G.

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC). (Foto: Aaron P. Bernstein/Reuters)

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC). (Foto: Aaron P. Bernstein/Reuters)

Além disso, o esforço reformador de Pai deve se estender ao marco legal das telecomunicações nos EUA. Ele já começou a mexer os pauzinhos para reformar uma lei de 1996, que fixou parâmetros para o que eram então novos segmentos, como telefonia celular e internet.

Família chegou aos EUA com US$ 10

Antes de trabalhar no governo, Pai já integrou o corpo de advogados da Verizon, maior companhia de telefonia dos EUA – e frequentemente sua proximidade com as empresas é alvo de críticas. O traquejo com políticas públicas vem da experiência como auxiliar parlamentar entre 2003 e 2004 do atual procurador-geral dos EUA, Jeff Sessions, durante a passagem dele pelo Senado norte-americano, e de sua experiência no Departamento de Justiça.

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC), é constantemente transformado em meme. (Foto: Reprodução)

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC), é constantemente transformado em meme. (Foto: Reprodução)

Estudou nas universidades de Chicago e de Harvard, onde integrou a equipe de debates. Por isso, possui colegas espalhados por cátedras de universidades de peso como a de Georgetown.

Filho de imigrantes indianos, ambos médicos, Ajit Pai nasceu em Buffalo (NY), em 1973, dois anos após seus pais chegarem aos EUA. Trata sua ascensão na burocracia de Washington como uma realização dos pais.

“Eles vieram aos EUA com apenas um rádio e US$ 10 no bolso. Como muitos imigrantes, sacrificaram-se para me dar as oportunidades que não tiveram quando crianças. Após 46 anos da jornada dos meus pais da Índia, aqui estou eu, neto de um vendedor de peças de carros e de uma arquivista, escolhido pelo presidente dos EUA para ser o chefe do regulador das comunicações”, comentou ao jornal “The Hindu” pouco antes de assumir a FCC.

Diferentemente de outros burocratas, no entanto, Ajit Pai gosta de polvilhar seus discursos com citações da cultura pop e do mundo da tecnologia. Após Wheeler aprovar garantias à neutralidade de rede em 2015, por exemplo, ele disparou: “Jovem tolo… Apenas agora, já no final, você entende”, citando Imperador Palpatine, de “O Retorno do Jedi”.

Durante o MWC, evocou Nikola Tesla para defender o potencial do 5G. “Quando redes sem fio forem totalmente implantadas, a terra será convertida em um cérebro gigante, capaz de resposta em cada uma de suas partes”, disse Pai, citando o responsável pela descoberta da corrente alternada. “Hoje, com o 5G, essa ideia parece muito mais praticável do que nos últimos anos”, completou.

‘Pessoa mais odiada da internet’

Casado com uma alergista e pai de dois filhos, Ajit Pai deixa escapar um pouco de sua vida íntima nas redes sociais. Recorreu ao Twitter, por exemplo, para perguntar que serie deveria ver após a maratona de “Game of Thrones”.

Mas é também na internet que ele paga alguns micos. Foi tirando exemplos de virais que ele produziu o mais farto material usado por seus detratores para criar memes a seu respeito. Em dezembro de 2017, durante a campanha para convencer americanos de que o fim da neutralidade de rede não seria tão ruim assim, Ajit Pai gravou um vídeo dançando “Harlem Shake” e fazendo outras coisas que, segundo disse, não acabariam com a mudança das regras.

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC), é constantemente transformado em meme. (Foto: Reprodução)

Ajit Pai, presidente da Comissão Federal das Comunicações (FCC), é constantemente transformado em meme. (Foto: Reprodução)

Foi a deixa para emergirem memes em que ele comia pipoca ao lado do ditador norte-coreano Kim Jong-un ou enquanto assistia feliz da vida a uma página da internet sair do ar.

Até celebridades online já fizeram coro ao movimento anti-Pai. Ele já havia sido chamado de “a pessoa mais odiada da internet” por ninguém menos que PewDiePie, o youtuber mais famoso do mundo. E como ele reagiu a tudo isso? Tirando sarro. Em um jantar da associação de advogados, por exemplo, fez piada por ser chamado de “fantoche da Verizon”.

Algumas críticas direcionadas a Pai não tiveram graça. Em dezembro do ano passado, sua família começou a ser atacada. Ao sair de casa, deu de cara com um cartaz direcionado a um de seus filhos, que dizia: “Ele irá saber a verdade. Papai assassinou a democracia a sangue frio”. Uma ameaça de morte o fez cancelar sua ida à maior feira de tecnologia do mundo, a CES, por considerar que não havia condições adequadas de segurança.

‘Soldado de Trump’

A rapidez com que Ajit Pai promove guinadas nas telecomunicações suscitam comparações com as políticas de Trump, o que lhe conferiu o apelido de “soldado de Trump”. “Ele adotou uma abordagem de ‘terra arrasada’ para tudo o que foi aprovado pela gestão anterior da FCC”, afirmou Craig Aaron, presidente do grupo ativista Free Press, ao site “Quartz”.

É difícil, porém, encontrar quem questione sua competência para ocupar o cargo. “Ele é um personagem bastante interessante na administração Trump, por ser qualificado para o trabalho”, disse Aaron. “Ele é muito esperto. É alguém que entende a agência e entende a lei”, elogiou Reed Hundt, ex-presidente da FCC durante a presidência de Bill Clinton, ao site “Cnet”. As empresas não escondem seu apreço por ele. “Ninguém é mais preparado”, afirmou a AT&T em comunicado.

Ainda que leal a Trump, Ajit Pai já se posicionou contra uma proposta do chefe, a de criar uma rede nacional de 5G. Afirmou que “contrário a qualquer ideia de uma rede nacional 5G construída e administrada pelo governo”.

“São os mercados, não os governos, que estão melhor posicionados para inovar e fazer investimentos”, afirmou no MWC. “O papel de governo não é comandar e controlar, mas permitir, encorajar e promover competição.”

Futuro

Algumas das ações de Ajit Pai começaram a ser questionadas. A própria agência abriu uma investigação para apurar por que ele acelerou a derrubada da regra que restringia que TVs comprassem jornais.

Durante sua aparição na MWC, ele afirmou que a história vai mostrar que sua atuação da neutralidade de rede foi a mais acertada.

“Companhias que começaram muito pequenas como Facebook, Amazon, Netflix e Google se tornaram gigantes globais precisamente porque nós tínhamos essa abordagem voltada para o mercado e encorajávamos investimentos em infraestrutura, assim como inovação na ponta”, afirmou Pai, citando companhias que, em sua maioria, se opuseram à quebra de isonomia na internet. Por Helton Simões Gomes, G1