Agruras e augúrios

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Roberio Sulz*

Faz sentido pensar que os tempos bicudos pelo qual ora passamos representem um duro e lamentável ensaio do apocalipse. A pandemia do covid-19 arrasou a humanidade em sua economia e sociabilidade. Perderam-se aos milhões empregos e chamegos, parentes e colos quentes, amigos e abrigos, lares e altares. Sobrou renda incerta, autoridade esperta; nas ruas gente pouca, mouca, de touca na boca; muda, sisuda; conversas só virtuais, banais, desiguais, eventuais; notícias sofridas, ausências sentidas; gélida solidão, cadê o aperto de mão? Chochos cumprimentos, muitos constrangimentos; olhares sem brilho, defesa do filho; pós-banho sem cheiro, cadê o dinheiro? Boca empanada, voz abafada; sorriso sumido, hálito perdido e álcool em gel até na aba do chapéu. Basta que o catarro engrosse, daí uma ligeira tosse; mesmo o cisco na goela, já se pensa em vela… e cova! Gripezinha… uma ova!

Ray Conniff tocando, saudade aflorando, de dançar agarradinho, trocando beijinho, de passo lento… Só no pensamento! Gargalhada e euforia, pra mostrar alegria, escondidas sob máscaras moles que se mexem feito foles. Sonhar com viagem ao nordeste, na praia quase sem veste, sem barranco, caniço ou anzol, na areia nem um inocente futebol.

Implantou-se o medo, nesse terrível enredo, fogaréu em todo Brasil, sem o mínimo brio, governantes ao redor, cantando e se divertindo como se estivessem assistindo a um espetáculo junino, com fagulhas e pontas de agulhas, vestindo babados, dançando xotes e xaxados, soltando balões e foguetões. Para eles, tudo uma beleza. Para nós, tristeza, abismados, desgraçados, a murmurar “segura as pontas meu coração!”

Escrevo esta crônica em quatro de outubro, dia de São Francisco de Assis, patrono da natureza e das relações fraternas, o que me deixa mais amuado com o que está acontecendo a nossa gente, nosso planeta, governado por incompetentes, pilantras, criminosos, maldosos e gananciosos, desinteressados absolutos no trato com os irmãos excluídos e a natureza.

O quadro a nós exposto diariamente é uma dramática cena dantesca de horror, regada a pranto e dor. Lamentável saber nas cidades, nos shoppings, nos botecos, nos ambientes descompromissados com a vida e sua qualidade integral não se ligam nem se ouvem os gemidos do jacaré ardendo sob labaredas, do papagaio em cinzas ao proteger ninho e filhotes, da onça, antes pintada, agora esturricada, do macaquinho agarrado a sua mãe, carbonizados. Indígenas desterrados. Árvores centenárias gigantescas em brasas acabando-se juntamente com os que nela habitavam e com seus irmãos vizinhos ambientais. Cenas de arrepiar. Para os companheiros de viagem no planeta isso apunhala e traz as lágrimas.

Parece “provação”. Rezemos por um novo mundo promissor, admitindo as vítimas atuais como mártires, expurgados os pecados sociais e tendo essas coisas como passado sem saudades. Mas, atenção! Novos tempos, com sociedade em bons costumes e atitudes, povo pleno de teto e estômago completo, ódio varrido e perdão assumido; alegria sem correria não são esperanças vãs, caídas gratuitamente do céu. Lembremo-nos que a Terra se desloca e rebola continuamente no espaço. Ilusão achar que o horizonte é sempre o mesmo a qualquer dia, que tudo se repete. Basta olhar pela “janela do trem” – como dizia Catulo da Paixão – para ver que o mundo vai ficando para trás e que experimentamos novidades a cada metro. Lembro-me da frase dita a minha filha por sua professora americana quando se despediu para retornar ao Brasil: “esta escola não mais será a mesma sem você!” Sensibilizado, agradeci e complementei: “o mundo nunca será o mesmo amanhã!” Lamentavelmente, acostumamos tanto às variações diárias sem nada ou pouco fazer para melhorá-lo que achamos ontem igual a hoje.

As alterações provocadas pelas penúrias atuais assustam, são dramáticas, duras, matam humanos, plantas e animais. Pessoas que agonizam na fila do oxigênio e imploram por respiradores nos hospitais não diferem muito dos animais que fogem do fogo. Bom seria, se com isso, aprendêssemos a valorizar as florestas, os rios, nosso ambiente natural.

A incerteza é apavorante. Falta ideia da cara do mundo depois dessas tragédias. É por aí que proliferam tolas profecias e inocente desejo de se voltar no tempo. Fantasia de pouco valor para propostas racionais sérias. Até as vacinas, tábua de salvação de expectativa universal, são tidas por seus criadores como imprecisas, sujeitas a dar xabu. Mas, não faltam maluquices, brotadas como larvas no esgoto do desespero!

Aconselhável é preparar-se conscientemente para o porvir, a partir de exercício ativo (não passivo!) e bem estruturado. Por exemplo, reconhecer, sem viés de qualquer ordem, etnia ou cor, as causas da covid-19 e a desgraça ambiental, esta última marcada por queimadas, calor insuportável, secura, falta de chuvas, rios secos, até prenúncio de fome etc. – a fim de evidenciar os erros cometidos e evitar recidivas e repetecos; analisar e compreender os atuais humores coletivos afetados por vontades políticas absurdas, descabidas e geradoras de mais incertezas; por fim, superar preconceitos de matizes variados para sepultar vieses e impor segurança ao planejamento e à condução de ações.

Nessa linha, fugir à tentação de se obter resultado em curto prazo; não se deixar tomado por entusiasmo inconsequente. Com calma, identificar e eleger prioridades, tendo como objetivo máximo a valorização da criatura viva, inclusive o “hominus”, seu nicho e suas relações ambientais,

*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências Biológicas pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Membro correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador.  [email protected]