Aconteceu comigo

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Por Roberio Sulz*

Viajava em ônibus semi leito, desses diferentes dos comuns pelo maior espaçamento entre as fileiras dos assentos e da inclinação do encosto. Ocupava poltrona no corredor na parte mais frontal. Meu obeso vizinho de poltrona sentia-se à vontade para refastelar-se, revirar-se e acomodar-se em espaço definitivamente subdimensionado para gente de seu porte. Temporizava sua viagem entre dormir e acordar com o próprio ronco. A viagem era noturna, partindo de Teixeira de Freitas às dezessete horas com chegada prevista para as seis da manhã em Salvador/BA.

Na rodoviária de Itamaraju, desci para usar o sanitário. Notei que estávamos em quatro veículos da mesma empresa, iguaizinhos em cor e modelo, provenientes de várias localidades do extremo sul baiano. Reuniam-se em Itamaraju para, dali, seguirem juntos em comboio. Esse manejo visava a aumentar a segurança contra possíveis assaltos noturnos.

Prensado e mal acomodado, consegui resistir e até experimentar alguns flashes de cochilo até próximo da meia noite quando paramos na rodoviária de Itabuna. Desembarquei para esticar as pernas e um pequeno café. Não sem antes observar que, lá pelas últimas fileiras, muitas poltronas se achavam desocupadas.

Na plataforma, proseei com algum anônimo companheiro de viagem. Falei dos tempos em que viajava pela Embrapa e fazia visitas técnicas à CEPLAC, naquela cidade. Mas, não muito me demorei fora do ônibus. Fazia muito calor. Optei ficar sob o ar refrigerado interno do veículo. Ao retornar, meu lugar achava-se inviabilizado, já consideravelmente invadido pelo volumoso vizinho, que sequer desembarcara e continuava em seu cíclico “adormece-ronca-desperta”.

De início, hesitei ocupar assentos desocupados, pensando estarem os mesmos destinados a novos passageiros que seriam embarcados em Itabuna. Mesmo assim, transferi-me e acomodei-me num par de poltronas vazias, na penúltima fileira. Desci o encosto e forcei um cochilo ainda com o veículo parado.

Quase nada demorou, o motorista fechou a porta de acesso e, ato contínuo, iniciou as manobras de partida. Aproveitando as luzes internas ainda acesas, caminhava pelo corredor uma cidadã loura, notável por seus exuberantes trajes, penteado, pulseira e colares. Encheu de perfume o ambiente.

Embora ainda restasse mais de meia dúzia de assentos desocupados naquela parte traseira, ela parou defronte ao meu, mirou-me com evidente descortesia. A tal figura, embora chamativa, não fora notada até aquele ponto da viagem. Pensei, por lógica, tratar-se de nova passageira embarcada em Itabuna. Levantei-me, pedi desculpas e busquei outro lugar.

Ela continuava a me encarar carrancudamente até que me indagou:

– O que foi feito de minha bolsa deixada sobre este assento enquanto fui lá fora para fumar?

– Não sei, minha senhora.

Tentava explicar-lhe a razão de ter-me mudado para aquele assento quando fui interrompido aos gritos:

– Não há desculpas, meu senhor. Deixei minha bolsa exatamente neste assento e uma maleta cor-de-rosa no porta-bagagem sobre estas poltronas. A maleta continha joias caríssimas e minha bolsa dinheiro, inclusive notas de dólares.

E continuou, sem me ouvir, montando um tremendo “barraco”:

– Motorista, vá até uma delegacia. Vou prestar queixa e pedir investigação sobre este senhor que, tudo indica, furtou meus pertences.

O motorista, parou o ônibus e ainda tentou falar em minha defesa.

– Nada disso me interessa – continuou dirigindo-se ao motorista – se ele não é o autor do furto, então o senhor foi conivente ou relapso permitindo a entrada de algum ladrão. O fato é que me roubaram! Vou prestar queixa e processar a empresa. Feche a porta, ninguém sai até chegarmos à delegacia de polícia.

E essa altura, todos os passageiros despertaram, muitos levantaram-se dos assentos.

O motorista avisou, por rádio, aos demais motoristas do comboio sobre confusão formada e de seu deslocamento à delegacia. Pediu-lhes que descontinuassem a viagem até resolver o imbróglio.

O delegado pacientemente ouviu a cidadã queixosa. No meu depoimento, logo em seguida, acrescentei não ter notado a presença daquela senhora no nosso ônibus, no percurso até Itabuna. Tanto que cria fosse uma nova passageira embarcada naquela parada. Identifiquei-me como biólogo e viajando para participar do Fórum Estadual de Meio Ambiente. Achou-me confiável e com jeito de investigador. Pediu-me para expressar algumas hipóteses que formularia sobre o ocorrido.

Ousei supor que, se todos os ônibus em comboio eram altamente semelhantes em aparência e, parados simultaneamente em Itabuna para ligeiro descanso, então a referida senhora forjadora do “barraco” teria embarcado em ônibus “errado”, ou seja, não no que viera. Para testar essa hipótese, o delegado poderia se louvar no serviço de comunicação entre motoristas e indagar sobre a existência de bolsa e maleta na poltrona tal.

Aceita a sugestão, comprovou-se que a cidadã enganara-se ao entrar naquele ônibus, pois sua bolsa bem como a dita maleta, rica em joias e moedas, achavam-se intactas n’outro veículo, na mesma poltrona por ela informada.

Pelas quatro da manhã, já atrasados em mais de uma hora, fizemos nova parada na cidade de Santo Antônio de Jesus. O assunto não era outro entre os passageiros. Mas, a referida senhora não ousou descer do ônibus.

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Pensador por opção. roberiosulz@uol.com.br