A rota do tráfico humano na fronteira da Amazônia: Rodovias que separam o sonho do pesadelo

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O Metrópoles percorreu quatro países para mostrar como funciona a rede clandestina que movimenta US$ 32 bilhões por ano no mundo

Quilômetros de estradas e rodovias federais separam o sonho do pesadelo. Promessas de uma vida melhor fazem brasileiros deixarem o lar e partirem para regiões remotas, garimpos e até mesmo outros países. Pessoas se tornam mercadorias, que podem ser vendidas, trocadas e descartadas nas mãos de organizações criminosas.

O mercado é bilionário e o lucro proveniente dele está perto de ultrapassar o do tráfico de drogas e armas. No mundo, o tráfico de pessoas movimenta mais de US$ 32 bilhões por ano, segundo o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). As vítimas são utilizadas em exploração sexual, trabalho escravo ou inseridas no mercado ilegal de compra e venda de órgãos e tecidos.

Para mostrar como acontecem o aliciamento e a travessia de traficantes e vítimas dentro e fora do país, o Metrópoles foi à Bolívia, ao Peru e à Venezuela. Acessou o solo estrangeiro pela porta da frente, mas também percorreu rios, vias clandestinas e trilhas abertas em meio à mata, principais acessos do crime organizado na América do Sul.

As redes de tráfico humano que atuam no país são cautelosas e se atentam para um dos pontos mais críticos da empreitada criminosa: o transporte. Garantir a ida e o acesso das vítimas aos municípios ou países de destino sem chamar a atenção das autoridades é crucial.

Para isso, as organizações contam com uma gama de “parceiros” nas estradas. São taxistas e motoristas de vans e ônibus que se articulam e levam, sobretudo, mulheres e adolescentes para os “pontos de coleta”, onde elas são encaminhadas para casas de prostituição, fazendas, garimpos ou estabelecimentos no exterior.

Nas Guianas Inglesa e Francesa, por exemplo, há uma ramificação do tráfico humano especializada exatamente no transporte de brasileiras para fins de exploração laboral, sexual e venda de órgãos. A movimentação desses veículos é mais intensa entre a cidade brasileira de Bonfim, em Roraima, e Lethem, na Guiana Inglesa. Fretados, os automóveis também transportam haitianos e cubanos para as capitais do Brasil.

A movimentação clandestina, apesar de silenciosa, é de conhecimento das autoridades brasileiras, que se articulam para enfraquecer quadrilhas nacionais e internacionais. Nos últimos três anos, a Polícia Federal (PF) cumpriu um mandado de prisão a cada três dias contra criminosos que violam os direitos humanos no Brasil. Em contrapartida, a cada dois dias e meio, uma vítima foi resgatada. Entre 2018 e 2020, a PF iniciou 231 operações para combater crimes dessa natureza. Dessas, 192 já foram deflagradas.

Apesar da incidência de casos, o tráfico humano ainda é visto como algo distante da realidade de milhares de brasileiros, e a subnotificação dificulta a elaboração de dados concretos sobre o crime.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

“As pessoas deixam de denunciar. Algumas não conseguem se ver como vítimas. Outras têm medo de expor, tornar pública uma exploração sexual ou sentem temor das organizações criminosas, que são estruturadas e podem gerar algum tipo de ameaça às suas famílias”

Delegado Daniel Daher

Chefe da Divisão de Repressão a Crimes Contra Direitos
Humanos da Polícia Federal.

Atualmente, o Brasil é considerado país de origem, de trânsito e de destino para vítimas e autores. Alguns grupos acessam o território nacional e seguem para outras localidades, principalmente para a América do Norte. Nos últimos quatro anos, quase 30 mil brasileiros foram apreendidos tentando ingressar ilegalmente nos Estados Unidos pela fronteira terrestre.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

A pandemia mundial do coronavírus agravou o principal ponto explorado pelos criminosos: a vulnerabilidade. Em julho deste ano, o governo americano alertou que a Covid-19 criou o “ambiente ideal” para o aumento do tráfico de pessoas.

O crime se caracteriza quando a vítima é agenciada, aliciada, recrutada, transportada, transferida, comprada, alojada ou acolhida mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso.

O secretário de Estado norte-americano Antony Blinken destacou que, enquanto os governos direcionam recursos para a crise de saúde, os traficantes se aproveitam dos vulneráveis. De acordo com Blinken, quase 25 milhões de pessoas no mundo são vítimas de tráfico. “Muitos são forçados a trabalhar com sexo, fábricas, campos ou a ingressar em grupos armados. É uma crise global. Uma grande fonte de sofrimento humano”, disse durante a Cerimônia de Lançamento do Relatório sobre Tráfico de Pessoas de 2021, em 1º de julho, nos EUA.

Nesse contexto, a visão ampla dos órgãos governamentais sobre o problema é primordial para entender a dinâmica, a perpetuação da modalidade criminosa e para traçar medidas de combate e prevenção.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Em âmbito nacional, as rodovias não são apenas vias por onde as vítimas circulam, mas também se tornaram cenário para as mais variadas explorações. Nos 71.000 km de estradas patrulhadas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), é possível identificar pontos de tráfico de pessoas e exploração sexual de crianças e adolescentes. O monitoramento é feito por meio do Projeto Mapear.

O levantamento tem como principal objetivo subsidiar ações preventivas e repressivas de enfrentamento ao crime, bem como orientar políticas públicas. O último estudo feito pela PRF, que corresponde ao biênio 2019-2020, identificou 3.651 pontos vulneráveis nas rodovias federais. Aumento de 47% em relação ao total de pontos do biênio anterior. Estatística agravada durante a pandemia de Covid-19.

Concentração de Pontos Vulneráveis por Rodovia Federal

Segundo a corporação, a grande quantidade de pontos levantados pode ser atribuída ao aumento da frota de veículos, surgimento de novos estabelecimentos formais e informais ao longo das rodovias e maior conhecimento dos policiais rodoviários federais sobre as características que determinam a vulnerabilidade à exploração nas rodovias.

As estatísticas também são acompanhadas pelo Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, desenvolvido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Ao Metrópoles, o ministro da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Anderson Torres, ressaltou a importância do combate ao crime organizado. “O tráfico de pessoas é um crime cruel e gravíssimo que alimenta organizações criminosas internacionais e assola a dignidade humana. Não daremos trégua a essas organizações. O Brasil atua em conjunto com outros países para identificar e punir os responsáveis por esse crime. Além disso, o MJSP está ampliando as capacitações para que os profissionais de saúde e de assistência social saibam identificar e acolher as vítimas”, afirmou.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Relatório elaborado pela OIT aponta que, ao longo dos últimos 25 anos, os municípios com maior incidência de pessoas resgatadas encontravam-se nos estados do Pará e do Maranhão. Desde o início da pandemia de Covid-19, no entanto, as unidades federativas com maior número de resgates foram Minas Gerais (351), Distrito Federal (78), Pará (76), Goiás (75) e Bahia (70).

“Os órgãos públicos enfrentam desafios para investigar esse tipo de crime porque é difícil caracterizar, comprovar, e as vítimas têm medo de denunciar. Não podemos atuar apenas com base em denúncias porque elas podem nunca vir. É preciso mapear essas rotas, usar a tecnologia, como banco de dados, e identificar onde essas pessoas estão. Também estamos nos aperfeiçoando para conseguir, em meio às operações, identificar e atender da melhor forma essas vítimas”, destacou o procurador do Trabalho Ulisses Dias de Carvalho.

Um exemplo de que o crime segue presente no país e no mundo é a Operação Liberterra, deflagrada entre 5 e 9 de julho deste ano pela PF. Outros 40 países, em todos os continentes, também fizeram parte da ação.

Os trabalhos envolveram atividades de prevenção, repressão e apoio às vítimas dos crimes do tráfico de pessoas, contrabando de migrantes e crimes correlatos – falsificação de documentos, inclusive de viagem, uso de documento falso, lavagem de dinheiro e organização transnacional. A PF realizou seis ações em diversas regiões do país. Foram cumpridos diversos mandados judiciais e houve o resgate de 10 vítimas, entre brasileiros e estrangeiros.

Brasil – Bolívia

Aos 10 anos, foi estuprada pelo tio. Aos 13, já viajava com as amigas para a Bolívia. Filha de pais separados, Vanessa Brizola da Silva, 17 anos, sonhava em ter sua própria casa, trabalhar como modelo e conhecer o mundo.

Escondia dores e traumas atrás dos cabelos coloridos, roupas de luxo e festas. Não falava para ninguém sobre o que passou, também não explicava o que fazia para se manter. Precisou amadurecer rápido, tentou esquecer o que a machucava.

A convite de colegas, e na companhia de amigas, a menor começou a trabalhar na Bolívia. Entrava a pé pelo município de Cobija e seguia de ônibus para a capital La Paz, sem qualquer dificuldade.

Apesar de passar boa parte do tempo viajando, o salão de beleza do pai, Adeirton José da Silva, 46, na pequena Epitaciolândia, no Acre, era o que mais se parecia com um lugar seguro. Lá, ela voltava a ser criança. O local se transformava na passarela em que Vanessa desfilava, ensaiava poses, se produzia, cortava e pintava o cabelo. Todas as mudanças no visual eram executadas pelo genitor.

De sorriso largo, a jovem sentava em um dos bancos coloridos do estabelecimento e compartilhava planos e sonhos com o pai, que quase chegou a inscrevê-la em um concurso de miss.

“Acredito que alguém falou desse emprego para ela aqui no Brasil e a levou para o estrangeiro. Tinha uma promessa, algo garantido. Apesar de nova, era esperta. Ela não ia viajar para tão longe sem ter onde ficar. Não ia morar na rua. Vi que, apesar de viver com todo esse luxo, a Vanessa carregava algo pesado no coração. Só que ela não falava, nunca falava”, lembrou o pai.

Adeirton José da Silva conta como perdeu a filha, Nathália da Silva, para o tráfico humano. Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

A mãe era detentora da guarda, mas a jovem chegou a morar com uma tia e com a avó materna. Sempre que podia, fazia uma visita ao pai. “Era a alegria e inspiração para as minhas outras três filhas. Um dia, em agosto do ano passado, eu a vi sentada no banco da praça. Estava triste. Não era a Vanessa que conhecemos. Perguntei o que havia acontecido e ela disse que, há sete anos, queria contar algo… Só que não tinha coragem”, disse Silva.

A revelação feita pela filha ecoa na cabeça de Adeirton José todos os dias. Vanessa encostou a cabeça no ombro dele e começou a contar. Detalhou que, aos 10 anos, quando morava com a avó materna, foi com uma prima deixar almoço para o tio, que estava trabalhando. O homem estuprou as duas crianças. Ela o denunciou para a avó e para mãe, queria pedir ajuda para o pai, mas antes de ter oportunidade de falar, foi levada para Porto Velho, em Rondônia. “Queriam proteger a família porque pensavam que eu poderia fazer alguma besteira”, conta.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles
“Fiquei sem chão, uma pessoa que era para proteger, cuidar, foi a que feriu. Não conseguia aceitar. Eu a convenci a registrar ocorrência e, no dia seguinte, ela prestou depoimento detalhado na delegacia. Ouvi tudo. Ele saía da cama em que dormia com a mulher e estuprava a Vanessa. Os meses passaram e não tivemos retorno da polícia. Pensamos que não teria Justiça”, desabafou o pai.

Dois meses após registrar ocorrência, a jovem fez uma festa e reuniu amigos. Em um determinado momento, chegou a abaixar o som e avisar que era a última comemoração do grupo. Também separou uma roupa e avisou para a prima que queria usá-la ao ser enterrada. Apesar das declarações, os amigos não imaginavam o que estava por vir.

Quando a festa acabou, Vanessa tirou a própria vida. Chegou a ser socorrida pelo pai, mas não apresentava sinais vitais. “Ela queria ser ouvida, queria ajuda. Estava sofrendo, procurou uma fuga, como se o dinheiro e as viagens fossem uma saída. Acredito que foi aliciada e viveu coisas que nem consigo imaginar. Se manteve calada, teve que conviver com tudo sozinha”, lamentou o pai.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Adeirton José ainda tenta entender o que acontecia nas viagens feitas pela filha. “Durante a noite, deito no quarto e penso em todas as perguntas que talvez nunca terei resposta. Um pedaço de mim morreu. Não sei o que ela enfrentou, não consegui ajudar.”

A história de Vanessa não é diferente da realidade de outras jovens da região de Epitaciolândia. De acordo com a delegada da Polícia Federal Nathália Ribeiro Leite Silva, a falta de oportunidades e a situação de vulnerabilidade econômica e familiar fazem com que adolescentes vejam o país vizinho como única chance de mudar de vida.

Muitas passam a trabalhar em casas de prostituição. Estabelecimentos para esse fim são legalizados na Bolívia. Entretanto, também é proibida a exploração de menores de idade.

“A falta de oportunidade, de perspectiva, faz com que essas meninas vejam a prostituição em outros países como o caminho mais fácil. Elas acompanham, pelas redes sociais, amigas que moram fora. Todas cercadas de tudo que elas queriam ter. Temos criminosos que trabalham exatamente com isso, fomentam esse sonho, como se elas só conseguissem alçar o que almejam por este meio”, explicou a delegada.

A delegada da Polícia Federal Nathália Ribeiro Leite Silva acredita que as jovens precisam de mais oportunidades de emprego e estudo para não cair nas mentiras dos aliciadores. Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Nathália Silva destaca que há, predominamente, dois tipos de vítimas: as que são enganadas por falsas propostas de emprego e as que acreditam que a prostituição é um negócio lucrativo. “Em ambos os casos, essas garotas são vítimas. A vulnerabilidade social faz com que elas acreditem em uma vantagem que não existe. Falta instrução, acesso à informação. Quando se trata de menores de idade, o caso é ainda pior. Elas não têm condições de fazer essa escolha”, alertou a delegada.

Apesar de a Bolívia ter políticas públicas e leis que protegem os menores, é possível viajar pelo país sem qualquer documentação. A reportagem foi até a rodoviária interestadual de Cobija e viu adolescentes de 13 anos comprando passagens sem autorização dos pais ou documento de identificação.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

O terminal é repleto de avisos que alertam para a proibição de transportar menores, sem a devida documentação, em ônibus interestaduais. Os cartazes e a presença da polícia, entretanto, não intimidam alguns funcionários.

O agente de turismo abordado pela equipe do Metrópoles fez apenas duas observações: a menor precisa ter aparência de mulher mais velha e era necessário pagar a mais.

Duas passagens de ônibus interestadual para La Paz saíram por 380 bolivianos. O valor de uma passagem para adulto custa, em média, 150 bolivianos. A viagem tem duração de dois dias com apenas um ponto de parada.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Perfil

O perfil preponderante no Acre, onde as mulheres são as principais vítimas dos aliciadores, reflete-se em todo o país. Relatórios nacionais e internacionais indicam que há uma maior concentração de mulheres e meninas na exploração sexual e nos serviços domésticos.

De acordo com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), as mulheres são maioria nas regiões brasileiras fronteiriças com outros países, como Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Venezuela e Suriname. A principal finalidade é o mercado sexual. A pasta também alerta para o aumento de vítimas LGBTIQ+.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Relatório elaborado pelo MJSP e divulgado em 29 de julho deste ano, trouxe, pela primeira vez, informações sobre a raça das vítimas atendidas pelos Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e postos do Ministério da Saúde. Os números demonstram a transversalidade entre raças e a vulnerabilidade para o tráfico de pessoas.

Raça das possíveis vítimas atendidas pelos Núcleos e postos

Período de 2020

Fonte: MJSP/CGETP (dados disponíveis apenas para o ano de 2020)

Cerca de 72% das pessoas eram negras, enquanto pouco mais de 25% eram brancas. Do grupo atendido exclusivamente no sistema de saúde, 58,5% eram negras e 31,7%, brancas.

Também foi possível identificar características dos aliciadores. Os que têm relação de confiança com as vítimas estão presentes em 75% dos casos. A maioria também faz parte de grupos organizados com mais de três pessoas. Nos últimos dois anos, 83 traficantes foram indiciados pela Polícia Federal. No que se refere aos presos, os internos são, em grande parte, homens.

Número de procedimentos sobre aliciamento e tráfico de pessoas com a finalidade de trabalho escravo de acordo com Ministério Público do Trabalho

Total de Procedimentos sobre Aliciamento e Tráfico de Trabalhadores

Fonte: PF/MJSP

Entre 2018 e 2020, a Polícia Federal resgatou 203 vítimas de tráfico humano. O Disque 180, número voltado a denúncias de exploração contra mulheres, recebeu, entre 2017 e 2019, 388 denúncias. Dessas, 237 se referiam à exploração sexual, 121 sobre trabalho em condições análogas ao de escravo, 17 para fins de adoção e 13 para remoção de órgãos.

Número de inquéritos por modalidade de tráfico interno e internacional de acordo com a Polícia Federal

Evolução temporal de 2017 a 2020

Fonte: PF/MJSP

Número de denúncias recebidas pelo Ligue 180 referente ao tráfico de mulheres

Período de 2017 a 2019

Fonte: Ouvidoria/MMFDH

Entre todas as estatísticas, o relatório traz um dado preocupante: 86 denúncias de tráfico de pessoas envolvendo meninas de até 18 anos foram feitas por meio do Disque 100, de Direitos Humanos, entre 2017 e 2020.

O número está acima da média global apresentada pelo relatório do UNODC. Enquanto a média nacional foi de 40%, os dados mundiais registram 34% de vítimas no mesmo período.

Brasil – Peru

O trabalho escravo anda de mãos dadas com o tráfico humano desde a colonização do país. Dados da Defensoria Pública da União (DPU) apontam que, atualmente, predominam, no Brasil, o tráfico interno, representando 95% dos casos atendidos por defensores públicos. A principal finalidade é trabalho escravo seguido de exploração sexual.

Homens e meninos são os principais alvos quando se trata de trabalho forçado. Em busca de oportunidade, muitos são levados para fazendas no Pará, em Mato Grosso, na Bahia e em Goiás. Normalmente são jovens, com idade superior a 16 anos.

O cenário é ainda mais fácil de ser observado na região Norte, na Amazônia. Por ser um território de grande extensão fronteiriça com vários países, como Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, há uma facilitação para o tráfico, que ocorre sem grande fiscalização.

No Acre, a partir de 1880, famílias inteiras de indígenas passaram a ser aliciadas, enganadas e escravizadas em fazendas. Situação que perdurou por 100 anos, até 1980.

A necessidade, na década de 1980, fez Ramiro Estevão Kaxinawá, com apenas 7 anos, seguir para fazendas no interior do Acre à procura de sustento para a família. Ele era levado de barco para as propriedades.

O trabalho era duro, começava nas primeiras horas do dia e incluía caça e corte da seringa. O pagamento vinha em forma de punhados de farinha, rapadura e linha.

No Acre, a partir de 1880, famílias inteiras de indígenas passaram a ser aliciadas. Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Famílias inteiras dormiam amontoadas em abrigos construídos nas plantações. A estadia gerava custo. Era preciso pagar para trabalhar, para ter um lugar para ficar.

“Estávamos sempre devendo algo. Não sabíamos quanto porque não tínhamos conhecimento algum. Nos levavam de uma fazenda para outra e o trabalho era sempre pior. Muitos adoeceram, pegaram gripe, doenças de branco. Não tinha como comprar remédio, não conseguimos curar o que não conhecíamos”, lembrou Ramiro Estevão, ou Diasan Ronikwin, nome indígena.

Hoje, com 86 anos, Estevão guarda, como cicatrizes, histórias de explorações que viveu durante 40 anos. “Meus pais morreram. Meus filhos nasceram em uma das fazendas. Eu não aceitava ver todos vivendo daquela forma. Tive que fugir”, relatou.

O local seguro surgiu às margens do rio Purus, próximo ao município de Manoel Urbano, no Acre. A família construiu casas e passou a chamar a região de lar. À época, os seringueiros tomavam as terras, expulsavam as famílias e escravizavam aquelas que ficavam, obrigando-as a consumir apenas o que era vendido no seringal.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

Além disso, eles eram proibidos de plantar, cultivar qualquer tipo de alimento ou criar animais. A regra era trabalhar apenas para os patrões.

Jayme Salomão Matheu Kaxinawá, ou Daso Ronikwin, 74 anos, é primo de Ramiro Estevão e compartilha da mesma experiência. Aos 12 anos saiu do Brasil com toda a família após uma promessa de emprego no Peru. Iam trabalhar numa fazenda em troca de salário e moradia. Uma oportunidade que parecia sob medida para o grupo de 12 pessoas. Ao chegarem à propriedade, a realidade foi outra.

Viviam reféns dos fazendeiros, eram proibidos de falar a própria língua, manifestar a fé ou fazer rituais. “Éramos um nada. Não tínhamos direitos, casa. Lembro que seis pessoas dormiam encolhidas no chão com apenas um mosquiteiro. Foi o que conseguimos comprar à época. Entregávamos a caça, a borracha, eles não pesavam. Só levantavam no braço e davam um valor qualquer. Eu não sabia somar. Então, sempre aceitamos o que eles nos davam, muito pouco”, relata Jayme.

Oprimida, a família decidiu executar um plano ousado. Decidiu voltar ao Brasil, mesmo que custasse a vida. Separaram madeiras e passaram o dia construindo o barco que os levaria para longe dali.

Crédito: Igo Estrela/Metrópoles

A rota percorrida por Jayme, no rio Acre, até hoje é usada por brasileiros e peruanos sem qualquer tipo de controle. A reportagem percorreu o mesmo trajeto. O ponto de partida foi o município de Assis Brasil.

O rio dá rápido acesso ao município de Iñapari, no Peru. O transporte de pessoas e mantimentos é feito de forma livre e com pouca ou nenhuma fiscalização. Em pouco mais de 30 minutos é possível desembarcar no país vizinho.

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Brasil – Venezuela

Trilhas clandestinas marcam o solo entre o Brasil e a Venezuela. As múltiplas passagens surgem pela mata, e famílias inteiras se reúnem em uma caminhada penosa, que pode durar mais de quatro dias. O primeiro destino dos venezuelanos é a cidade de Pacaraima, em Roraima. A viagem é arriscada e, de forma ilegal, não há garantia de acesso ao país.

Em situação de completa vulnerabilidade, os nossos vizinhos fogem de uma grave crise humanitária. De acordo com dados da Plataforma de Coordenação para Refugiados e Migrantes da Venezuela (R4V), atualmente, mais de 5,6 milhões de habitantes já deixaram o país.

A adoção de medidas mais restritivas para a entrada de latino-americanos nos Estados Unidos e na Europa acentuou a migração para o Brasil – intensificada, expressivamente, em 2017, com 6.894 venezuelanos com registros ativos no país.

Em 2018, esse número aumentou para 32.245; em 2019, atingiu 89.828; e em 2020, alcançou a marca de 265 mil migrantes e refugiados que solicitaram regularização migratória.

A grande circulação de estrangeiros na fronteira de Roraima fez com que redes de tráfico humano se estabelecessem na região. A alta procura por emprego e oportunidades tornou o aliciamento de homens e mulheres mais fácil e lucrativo.

Vendedor de sonhos

A poucos quilômetros da fronteira com a Venezuela, o Metrópoles encontrou um jovem de 25 anos que atuou como aliciador para donos de garimpo no Brasil. Ele afirma que desempenhou a função por seis anos. Sem se identificar, o homem deu detalhes de como atraía as vítimas.

“O foco, geralmente, é a mulher venezuelana de 18 a 30 anos. Elas passam necessidades, precisam mandar dinheiro para a família e, por isso, não apresentam muita resistência. Costumava publicar anúncios nas redes sociais. Dizia que era para trabalhar como modelo. Fazer propaganda. Tinha que ser convincente”, ressalta.

O rapaz explica que o “modelo de negócio” funciona, basicamente, em três etapas: seleção, transporte e pagamento. Quando as interessadas entravam em contato, era necessário fazer “um filtro”. O aliciador pedia fotos e observava o interesse das jovens na suposta vaga.

Um aliciador de 25 anos conta como funciona o processo de convencer as meninas a entrar para o tráfico. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

“Fazia questão de ligar, falar com elas, fazer entrevistas. Muitas vezes me passava por homossexual para passar confiança, segurança, tornar amigo. Dificultava o processo o máximo possível, tinha que parecer disputado, real. Chegava a dizer que elas não se encaixavam na vaga para agência de modelos, mas que eu tinha uma outra alternativa lucrativa: o garimpo”, lembrou.

Algumas informações genéricas eram passadas de forma preliminar, como a suposta localização do garimpo, e o principal: todos os pagamentos feitos em ouro.

O rapaz ressalta que o “grande momento” era a hora do encontro. “Com a fronteira fechada, elas passam pelas trilhas clandestinas. É até melhor porque chegam sem documento. No primeiro encontro, conseguimos ver se a pessoa vivia de forma precária na Venezuela ou se tinha alguma condição e aceitou a proposta devido à crise financeira. As mais humildes são enviadas, de imediato, para casas de prostituição em Pacaraima, Boa Vista e regiões ribeirinhas” contou.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

As mulheres consideradas “valiosas” para os traficantes exigem maior dedicação. “Elas ficam hospedadas nos melhores hotéis, deixamos carros disponíveis e as levamos até para fazer compras no shopping. A ideia é impressionar. Mostrar que o negócio é lucrativo. Eu sempre andava com fotos de ouro no celular, vídeos antigos. Exibia e dizia que eram recentes. Repetia que elas ficariam ricas lá”, confessou.

O teatro meticulosamente pensado tem um preço. Todos os gastos com transporte, compras e hospedagem são anotados em um caderno. Dívida que precisa ser paga de imediato, assim que as meninas chegam aos garimpos.

Um programa custa, em média, 5 gramas de ouro, cerca de R$ 1,8 mil. Entretanto, há os chamados “casamentos”, que consistem em um pagamento de 15 a 20 gramas de ouro para passar a noite inteira, equivalente a R$ 5,4 mil e R$ 7,2 mil.

“Sempre busquei pessoas que tinham beleza. Não importa se brasileira ou estrangeira. O negócio no garimpo é carne nova, carne fresca. Algumas vezes eles pedem mulheres específicas, grupos de Manaus, por exemplo. O rodízio é alto e, se você quer ganhar dinheiro, tem de estar sempre atento. Já consegui venezuelanas aqui mesmo na fronteira, sem precisar anunciar na internet. Chegava a ganhar 1 mil dólares por semana”, relatou o jovem.

O acesso aos garimpos é difícil. Para percorrer a rota, é necessário fazer parte do trajeto de carro e outro pedaço de barco, gerando um custo médio de R $1,3 mil, também anotado religiosamente no caderno.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

“Durante o traslado é importante manter o carisma porque elas não podem desistir. Sutilmente, passo algumas dicas de como elas devem se portar. Não ficar de cara fechada, fazer tudo o que mandam e, sobretudo, não roubar. Lá não é uma cidade. Não tem polícia. Tudo se resolve com morte”, explicou.

As mulheres que não se ajustam ao sistema são consideradas pessoas de “perfil problemático” ou “rodadas”. São jovens que não aceitam se prostituir, mas são obrigadas a pagar as dívidas com os traficantes.

“Depois que chega lá, não tem essa de dizer que não quer. O que conta é o ouro. Se não aderir ao sistema não come, não tem onde dormir. Fica abandonada na selva amazônica”, descreve.

Afastadas da civilização, depois que entraram no garimpo, as jovens precisam enfrentar as adversidades do ambiente precário e passam a ter pouco contato com a família.

“Quando você chega lá, a vontade é de ir embora. Elas precisam manter a boa aparência em um lugar completamente insalubre. Nunca impedi ninguém de falar com a família, mas alertava que era melhor ninguém saber a verdade porque, se acontecesse alguma coisa, e geralmente acontecia, era melhor os parentes não descobrirem. Elas sentem vergonha e medo.”

O jovem confidenciou à reportagem que levou o último grupo de mulheres há cinco meses. Cada uma deu um lucro que varia de R$ 1,5 mil a R$ 2 mil. “Parei porque tenho medo de ser preso. Para mim é um negócio, mas entendo que configura tráfico de pessoas. Vivia trocando de celular. Minha família nunca entendeu o motivo”, disse.

Crise

Em 2018, por meio da Lei nº 13.684, de 21 de junho de 2018, o governo brasileiro reconheceu a situação de crise humanitária na Venezuela e instituiu o Comitê Federal de Atendimento a Emergências, instância que atua com o acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade.

Nessa onda migratória, devido às precárias condições econômicas, grande parte da população ingressou no Brasil por via terrestre passando por Roraima, percorrendo o trajeto entre a cidade de Santa Helena de Uairén (Venezuela) e Pacaraima (Brasil).

Pacaraima, com uma população estimada em 18.913 habitantes em 2020, sofreu uma sobrecarga de demandas por bens e serviços públicos com a chegada em massa da comunidade venezuelana.

Assim, a estratégia adotada pelo Comitê Federal de Atendimento a Emergências foi reforçar a Operação Acolhida. A ação reúne órgãos do governo, ONGs e atua em três eixos: organização da fronteira; acolhida e interiorização.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Recente pesquisa das Nações Unidas sobre o tráfico de pessoas no fluxo migratório venezuelano identificou inquéritos e processos cuja principal finalidade é a exploração laboral. O relatório também apontou casos de exploracao sexual, adoção ilegal de recém-nascidos, especialmente em Roraima, além de casamentos forçados e casos de “mulas” para o tráfico de drogas.

“Existe um perfil variado de vítima. Portanto, no nosso atendimento, uma pergunta não é só uma pergunta. É preciso treinamento para ter sensibilidade e entender a real situação de cada um. O que mais aparece para nós é a exploração laboral e sexual. Sempre fazemos palestras de conscientização explicando os direitos que eles têm no Brasil e ressaltando que tráfico é crime. Trabalhamos, sobretudo, na prevenção e no apoio à vítima”, explica Giulia Camporez, coordenadora de proteção da Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Agência das Nações Unidas para as Migrações.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Prevenção

Há mais de 30 anos atuando na proteção aos vulneráveis nas rodovias da região Norte do país, a inspetora Verônica Cisz, da Comissão de Direitos Humanos da Polícia Rodoviária Federal (PRF), entende exatamente quais são os pontos explorados pelos aliciadores. A policial tem três filhos, todos foram aliciados, de formas distintas, em idades diferentes.

A inspetora da PRF Verônica Cisz explica o perfil das vítimas do tráfico humano. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Ela alerta as famílias para a nova modalidade do tráfico humano. “Atualmente, não é mais como antes, quando as pessoas imaginavam que as vítimas eram arrastadas, presas e acorrentadas. Na minha época, eu brincava na rua e o risco era o bicho papão, o homem do saco. Hoje em dia, esses monstros estão no aplicativo de celular falando com os nossos filhos. O diálogo e a prevenção são fundamentais.”

Em julho deste ano, a equipe da PRF, em parceria com órgãos municipais, resgatou duas jovens em uma casa de prostituição localizada em Rorainópolis, uma brasileira e outra venezuelana. Ambas choraram ao ver a polícia e não queriam voltar para casa.

“Achavam que estavam sendo cuidadas. Trabalhando honestamente e ganhando dinheiro. Tinham os algozes como mães e pais porque eles davam comida, elas não ficavam presas. Não viam que estavam sendo exploradas. Não conseguem entender que saíram de uma situação ruim e entraram em outra pior”, ponderou a inspetora.

Brasil – Guiana

“Mãe, eu caí em uma emboscada.” A frase foi dita por uma jovem ao desembarcar na Guiana Inglesa, em outubro de 2018. À época ela tinha 18 anos.

Acreditando que havia encontrado um companheiro e que teria uma vida diferente no exterior, Maria* foi do céu ao inferno durante o percurso de 133 km, distância entre Boa Vista e Lethem, na Guiana Inglesa.

De família humilde, Maria foi abordada por uma mulher durante evento na casa de amigos. Durante a conversa, foi questionada sobre a vida pessoal, se era casada, tinha filhos e se desejava conhecer alguém. A interlocutora, no dia seguinte, passou o contato da jovem para um indiano, morador da Guiana Inglesa.

O casal passou a conversar diariamente. O homem pedia fotos e prometia uma vida de conforto. Dizia que era dono de restaurantes, confecções e poderia conseguir um emprego com bom salário.

Não demorou para a brasileira aceitar o convite e embarcar para o exterior. Ela saiu da capital de Roraima em um táxi fretado. Parou no município de Bonfim e entrou em uma van, conhecida como navete. Foi escoltada durante todo o caminho, que durou quatro dias.

Ao chegar à Guiana, encontrou com o homem que havia feito as promessas. A jovem se deu conta de que eram mentiras. “Já chegou apanhando. Ela havia mandado fotos com o cabelo loiro. Quando chegou, estava morena. Ele se sentiu enganado. Disse que não era a mesma pessoa”, disse a mãe que, por motivos de segurança, também não será identificada.

Mãe conta anonimamente como ajudou a resgatar a filha do cativeiro. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Maria foi levada para casa do indiano. Ficou presa em um quarto e era agredida com um pedaço de madeira constantemente. Só saía do cômodo arrastada pelos cabelos.

O contato com a família no Brasil era vigiado. “Fizemos chamadas de vídeo, só que ela não explicava o que estava acontecendo na frente dele. Ficava nervosa. Quando estava muito machucada, ele mandava apenas fotos. Pelas imagens, consegui reparar nas marcas de agressão, mesmo ele tentando esconder, sou mãe, percebi na hora”, lembrou a genitora.

A mãe conta que chegou a sonhar que a filha estava sendo estuprada pelo companheiro. Preocupada, ligou para a jovem e contou sobre o sonho. “Relatei e perguntei se era verdade. Ela começou a chorar desesperadamente e desligou. Nesse dia, a Maria apanhou muito. Ele achou que eu sabia. Coincidentemente, era verdade. O abuso ocorreu na noite anterior. Mais tarde descobrimos que a violência resultou em gravidez”, explicou a mãe.

A esperança de sair do quarto escuro e voltar aos braços da família surgiu por meio do sobrinho do agressor. O adolescente ajudou a vítima a pedir socorro. Ele conectou um celular ao wifi da casa. Maria mantinha o aparelho escondido e, quando o homem não estava, mandava mensagens para a família.

Mensagens de desespero da menina traficada. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Nos vídeos, sussurrava emocionada pedindo socorro. Alertava para a mãe ter cautela, pois qualquer frase dita durante as ligações feitas na presença do companheiro poderia resultar em mais agressões.

Após dois meses mantida em cativeiro, Maria conseguiu enviar o endereço da casa onde estava. A genitora entrou em contato com o consulado do Brasil e o resgate foi feito dias depois por uma equipe da Polícia Federal.

“Ela estava com hematomas e marcas de queimadura no rosto. Teve a sobrancelha raspada. Chegou ao Brasil extremamente abalada. Andava de cócoras dentro de casa. Vivia assustada. Via aquele monstro em todos os lugares. Hoje, ainda vivemos com medo. Ele está solto e nos faz ameaças. Estamos sob proteção da Justiça. Nossa vida nunca mais vai voltar ao normal”, desabafou a mãe.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Maria deu detalhes para a polícia das ligações criminosas do indiano. Contou que ele tinha conexões com organizações voltadas para o tráfico humano e de drogas. Conhecia aliciadores de Manaus, da Guiana, Colômbia e Inglaterra. Relatou que chegou a presenciar o homem aliciando mulheres e crianças pela internet com o objetivo de levá-las ao Reino Unido.

Explicou que, durante as agressões, ele confidenciou que a van que a levou para a Guiana também transportava drogas. Acrescentou que o criminoso confessou que já havia vendido Maria para uma pessoa que mora na Inglaterra e, em breve, ela iria ser enviada para lá com um passaporte falso. O caso revelou uma grande rede de tráfico internacional e ainda é investigado pela Polícia Federal.

Lucro

As rotas estabelecidas no país, internas e externas, são corredores por onde circulam cifras bilionárias para traficantes que atuam no mercado do sexo. A assistente social do Centro de Atendimento às Pessoas Traficadas de Roraima Socorro Santos atua contra o tráfico humano desde 1996. Ela explica que os principais alvos para exploração sexual são meninas de 14 até 25 anos.

“Antigamente, as rotas apenas passavam por Roraima. As garotas eram trazidas do Pará, Maranhão, de Rondônia, Manaus e seguiam para Venezuela, Holanda e Estados Unidos. Hoje, temos o tráfico interno em expansão’’, alertou.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Socorro pontua que o crime é organizado e não tem pressa. “Tem tempo para estudar as vítimas. Explorar os pontos fracos, se aproximar e conquistar a confiança até mesmo de toda a família”, explicou.

“O mercado do sexo é lucrativo. A droga você vende a unidade apenas uma vez. A mulher você vende tantas vezes até que ela se suicide ou morra com alguma doença”, destacou.

Segundo a assistente social, as quadrilhas são tão articuladas que, desde os anos 1990, foi identificado um flutuante, em Roraima, para onde meninas eram levadas e instruídas sobre como deveriam atender os clientes.

Em uma ação realizada na última década e coordenada por órgãos de fiscalização, foram encontradas diversas autoridades no local. “Sabemos que é um crime com ramificações em diversos poderes. Por isso, o combate é difícil”, denunciou.

Sem respostas

As ramificações em diversos setores do governo, comércio e a atuação internacional das organizações criminosas, além das diferentes políticas voltadas para proteção dos Direitos Humanos entre os países da América Latina, dificultam as investigações e ações efetivas de combate e proteção às vítimas.

A complexa relação entre nações para o enfrentamento ao tráfico de pessoas atingiu de forma fatal a família de Juliana Rayssa Mendes Porfirio, 22 anos. Há três anos, os familiares convivem com a dor de uma morte prematura e a dúvida sobre o que aconteceu com a jovem após a travessia ilegal para a Guiana Francesa. O caso segue em aberto. É investigado pela Polícia Federal. Os pais ainda aguardam notícias sobre o andamento das apurações.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Apaixonada pelos dois filhos e pelo pai, Rayssa, durante o percurso percorrido do Brasil à Guiana, costumava relembrar canções cantadas pela família na pequena igreja localizada em Boa Vista, sua cidade natal. Por meio das composições, pedia força e coragem para suportar as dificuldades, experiências nunca reveladas aos parentes e amigos.

Pouco antes de morrer, chegou a pedir para a madrasta cantar uma música especial, em sua homenagem. A letra soa como consolo e diz: “Fica tranquilo, não se desespera”. O tributo foi feito tarde demais, apenas no enterro da brasileira, em novembro de 2018.

Passagem só de ida

A rota da jovem teve início em 2018, na cidade de Boa Vista. Convidada por uma vizinha para trabalhar como cozinheira em um garimpo, no interior de Roraima, Rayssa seguiu com a aliciadora pela BR-401 e desembarcou em uma região remota de extração ilegal de minério, localizada na área fronteiriça do estado.

Meses depois, seguiu com um suposto namorado para Georgetown, na Guiana. Explicou para os pais que ia trabalhar com o companheiro em um novo garimpo.

“As ligações eram frequentes. Eu perguntava qual era o nome desse rapaz, mas ela não falava. Se esquivava afirmando que não sabia se ia durar. Sempre conversava de forma alegre, chegou a enviar mensagens no Dia dos Pais. Também nos disse que estava grávida. Mandou um vídeo feito durante o exame de ecografia. Como ela sempre estava em contato, achava que estava tudo bem”, disse José da Silva Porfírio, 47 anos, pai de Rayssa.

De agosto até novembro de 2018, a família perdeu o contato com a jovem. “Após alguns dias, fiquei desconfiado. Mandei mensagem e disse que queria fazer uma chamada de vídeo com ela e o filho, que mora conosco. Ela não respondeu. Não atendeu”, lembra Porfírio.

José Porfírio conta como a filha morreu após a travessia ilegal para a Guiana Francesa. Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

A última notícia sobre a filha foi dada pelo consulado brasileiro. Rayssa foi internada em um hospital da Guiana Francesa, ficou em coma e não resistiu. Gestante de cinco meses, a criança também faleceu.

A notícia devastou a família, que teve de iniciar uma força-tarefa para trazer o corpo para o Brasil. “Soubemos da morte 10 dias depois. Por conta dos trâmites, ela chegou a Roraima depois de mais 18 dias. Estava irreconhecível. Ir ao aeroporto e esperar alguém vivo é sempre uma felicidade. Agora, buscar um filho morto é doloroso”, lamentou José Porfírio.

Crédito: Rafaela Felicciano/Metrópoles

Mesmo em luto, José reuniu forças para tentar entender o que aconteceu com a filha. Conseguiu localizar a mulher que a levou para o hospital. “Falamos por telefone. Apenas confirmou que a Rayssa estava com febre e se sentindo mal. Disse que as duas foram de barco até esse hospital na Guiana Francesa e que minha filha ficou em coma”, lembrou.

Apesar das declarações, a morte da brasileira ainda é um mistério. O suposto companheiro que estava com ela também foi localizado pelo pai, mas não respondeu aos questionamentos.

Agora, refazer o caminho percorrido pela filha é a esperança de descobrir a verdade. “Dizem que o tempo cura, mas até agora não sarou. Eu vivo o luto todos os dias. Prometi para mim mesmo que vou descobrir. Eu vou refazer a rota percorrida por ela. Quero saber o que aconteceu, o que estão escondendo”, concluiu Porfírio.

Denuncie

O tráfico de pessoas é crime no Brasil, previsto na Lei nº 13.344/2016, que pune formas de exploração como a sexual, remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal.

As denúncias realizadas por meio do Disque 100 e do Ligue 180 são gratuitas, podem ser anônimas e recebem um número de protocolo para que o denunciante acompanhe o andamento no Brasil ou no exterior. O serviço está disponível para qualquer pessoa e funciona diariamente, 24h, incluindo sábados, domingos e feriados.

Entre os grupos atendidos pelo Disque 100, estão crianças e adolescentes, pessoas idosas, pessoas com deficiência, pessoas em restrição de liberdade, população LGBTQIA+ e população em situação de rua.

O serviço também está disponível para denúncias de casos que envolvam discriminação étnica ou racial e violência contra ciganos, quilombolas, indígenas e outras comunidades tradicionais. Já as denúncias de violência contra a mulher são registradas pelo Ligue 180. Por Mirelle Pinheiro / Metrópoles

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