Por Roberio Sulz*
Falando de comunicação e da modernidade do Windows (janelas, em português) no computador vem à lembrança dona Amélia Reis, saudosa senhora de Nanuque, MG. Nos anos quarenta e cinquenta essa simpática, respeitada e falante senhora tinha como hábito repassar diariamente aos nanuquenses que se aglomeravam defronte à sua residência informações fresquinhas, coletadas no seu rádio, alimentado ininterruptamente por bateria de automóvel. Uma no batente e outra no carrego. Forte e larga antena de fio coaxial de cobre esticava-se de uma a outra extremidade da cumeeira de sua casa, garantindo a quase perfeita recepção dos sinais das emissoras de rádio das capitais em ondas curtas e médias.
Durante o dia intercambiava a sintonia entre as rádios Nacional e Tupi, ambas do Rio de Janeiro. À noitinha, ouvia atentamente a “Hora do Brasil” para, em seguida, sintonizar na Radio Sociedade da Bahia e ouvir os recados dos filhos da região estudando em Salvador. Essa última parte ela praticava animada por sua verve de fofoqueira. Deliciava-se em saber e informar em voz miúda às amigas íntimas, por exemplo, quem estava em atraso no envio a mesada para o filho e sugerir que passava por dificuldades financeiras.
Ainda pela manhã, quando os noticiários, já ouvidos e anotados, viravam repetições, dona Amélia debruçava-se no parapeito da janela, sempre coberto com uma toalha de linho branco, tendo bordada a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Em tom noticioso radiofônico, repercutia e comentava os últimos acontecimentos para os inúmeros interessados, já apinhados na calçada.
Compunham também a janela informativa de dona Amélia notícias relativas à Estrada de Ferro Bahia e Minas, tais como horário e atrasos previstos para chegadas e partidas de trens; data da presença do carro pagador na região para a entrega dos salários, anomalias nas máquinas de ferro, desastres etc. Informações trazidas a ela por Afonso, seu marido, telegrafista da estação. Na falta de notícias, ou para complementar as poucas do dia, informava sobre a programação religiosa da semana, fazia orações, lia trechos do evangelho, de bulas medicamentosas e suas aplicações; receitava chás, simpatias além de oferecer conselhos comportamentais, matrimoniais em especial, e até sobre época boa para plantio e colheita disso, daquilo. Tudo sempre reforçado pelo Almanaque Fontoura, um de seus livrinhos de cabeceira.
Dona Amélia, senhora da mídia na cidade, jamais passara por escola de jornalismo ou comunicação. Nunca convivera com afamados “imortais” analistas de cachimbo, muito menos com as “bocas nervosas” de hoje, gente remunerada a peso de ouro. Não obstante, era mestra em aplicar leitura própria às notícias e fazer valer sua interpretação, seu ponto de vista, seu interesse provinciano e o viés dado às ideias que pregava de sua janela! Reservava a si, contudo, boa dose de pudor e comedimento para manter alta sua audiência e credibilidade como comunicadora. Sabia até onde chegar. Muita gente conferia, com ela, a verdade e a mentira para as fofocas em circulação e fazia a cabeça a partir das palavras de dona Amélia.
Não foram poucos os que muito aprenderam com aquela comunicadora da janela. Essa, aliás, era a razão de ser muito procurada e paparicada pelos candidatos em época de eleição.
Mas a janela de dona Amélia ia além. Uma ou mais vezes por semana, seus filhos Dorinha e Peu junto com colegas da escola penduravam um lençol branco em todo o vão da janela. Com a luz interior de um Aladim (lampião a querosene pressurizado) mais figuras em papelão ou cartolina recortados, afixados em linhas ou varetas, promoviam um teatro de sombras. O enredo, quase nunca repetido, contava com auxílio e participação efetiva da professora Sofia.
Com um rastro de lógica e boa imaginação pode-se atribuir a dona Amélia Reis a invenção primária do sistema operacional “Windows” (= janelas) criado por Bill Gates, para operação na informática moderna.
Bom de refletir é que a mídia de hoje, seja de quem ou de onde, não passa de janela ameliana atualizada pela cinematografia hollywoodiana. Mas, lamentavelmente a maioria dela despudorada e enviesada, a soldo dos que melhor pagam para tê-las sob seu domínio. Lastreada pela modernidade eletrônica da telecomunicação, com mágicas ferramentas visuais, vem, dia-a-dia, contribuindo enormemente para o aumento do contingente de toupeiras, de obturados videotas desprovidos de consciência crítica. Enfim, para a explosão da população dos contemporâneos “maria-vai-com-as-outras”.
É nesse nicho que se aloja o repetido adágio de que “mais vale a versão que o fato em si”. E, pelo poder dado à mídia, especialmente às de alcance continental, a versão vira verdade em dois tempos, mesmo que escancare injustiça, falsidade e outros males. Ou seja, sob boa paga, faz de um príncipe um mendigo e de um mendigo de príncipe.
Pela própria auto propaganda e arroubos desmedidos, cristalizou-se o conceito de que a mídia tem o direito e o poder de falar o que quiser. No Brasil, pode, agora mais do que nunca, ofender impunemente governantes, religiões, raças, classes sociais etc. Até malhar a impunidade alheia. Nunca a própria, fajutamente escorada na chamada liberdade de expressão.
É por isso que vale a lembrança de dona Amélia Reis. Embora simples e primária, certamente era sábia na sua capacidade para influenciar pessoas por conta de sua responsabilidade de comunicadora. Pautava-se na consequência. Administrava sabiamente os ímpetos de liberdade e de responsabilidade que devem permear a comunicação social.
*Roberio Sulz é biólogo, biomédico e professor com licenciatura plena em Ciências Biológicas pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. Membro correspondente da ALAS – Academia de Letras e Artes do Salvador. [email protected]