A festa da alegria

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Hoje eu não quero sofrer, hoje eu não quero chorar, deixei a tristeza lá fora, mandei a saudade esperar, lá, rá, rá, rá; hoje eu não quero sofrer, quem quiser que sofra em meu lugar. Quero me afogar em serpentinas, quando ouvir, o primeiro clarim tocar, quero ver milhões de colombinas, a cantar, trá, lá, lá, lá, lá, lá; quero me perder de mão em mão, quero ser ninguém na multidão… lá, rá, rá, rá…
Essa linda marchinha de Rutinaldo e Klécius Caldas diz exatamente o que desejava o bom folião nos folguedos de carnaval de outrora.
Ah! que saudades daquela festa da alegria e da contagiante animação levada pelas vibrantes cornetas metálicas: pistões, trombones, clarineta e tubas sopradas por gordinhos bochechudos. Os tambores surdos confundiam-se com o pulsar dos corações. Os salões multicoloridos, com máscaras, serpentinas penduradas e confetes. Um disfarçado cuba-libre, uma cervejinha e olhos atentos aos brotinhos circulando em inocentes trenzinhos.
Quem dera toda essa graça pudesse ser levada às ruas de hoje, ainda que viesse a ser distorcida pelo som das agudíssimas guitarras, tambores elétricos e da parafernália de luzes e som dos badalados trios elétricos. Só assim esses lerdos monstrengos de multieixos não incomodariam tanto com o som ampliado a volume estratosférico. Certamente, seriam bem recebidos e até louvados por um ror de seguidores de todas as idades e saudades. Moços, maduros e os prá lá de maduros. Tiroleses, havaianas, colombinas, pierrôs, os árabes de araque, as descaradas baianas louras e barbadas e até as mocinhas menos recatadas do Bataclã. Todos saindo pelas ruas a ecoar lindas marchinhas, sambas e frevos! Olha que até o lança-perfume para uso moderado e responsável poderia ser liberado, sem o propósito da embriaguez.
Caramba! Assim estaria formatada a festa da alegria! Mesmo os ambulantes com suas galeotas poderiam continuar a vender cerveja e asquerosas bugigangas alimentícias para os corajosos esfomeados. O que não dá para engolir, de jeito nenhum, são os desprezíveis e improvisados carros com porta-malas abertos e camionetes com painéis repletos de autofalantes, cada um pronto a exibir em maiores decibéis de taquara rachada suas porcarias sonoras.
Para quem achava a “afro-bobagem”, característica dos carnavais baianos de ontem, uma deturpação musical, esses ruídos de latas batidas nas traseiras escancaradas é algo além do achincalhe ao bom gosto, é agressão, poluição e perturbação sem limites.
Nos ambientes de orla marítima, nos feriados, ou, ainda pior, nos dias de carnaval, ninguém consegue mais ouvir em suas casas músicas de seu agrado, tampouco dormir em paz. É um infindável “derengodengo” vindo de todos os pontos cardeais, confusos, sobrepostos, ininteligíveis. Em suma, é um amargo purgante que carece ser contido, pelo menos, para que a overdose não chegue ao cúmulo da troca de agressões físicas, o que termina facilitado pelo abuso na ingestão de bebidas alcoólicas e de drogas diversas.
Houve época – e não vai longe o tempo – em que por estas bandas da Bahia, nas cidades praianas, as festas, mesmo as carnavalescas, ocorriam de maneira mais limpa e ordenada: blocos agregando amigos, parentes e gente contente. Até música de composição própria – hino do bloco – existia, ensaiada aos montões nos saguões dos hotéis. Tinha até um padre que não perdia a oportunidade de vestir sua sunga e pongar numa camionete, contra vontade do bispo, é claro.
E os “caretas?” Quanta gente fina camuflada atrás de máscaras, desafiando os curiosos a descobrir suas identidades. As marchinhas faziam o fundo musical das cabanas de praia durante as manhãs ensolaradas e a criançada se esbaldava na areia, pulando e cantando ilariê e balão mágico.
Contudo, há quem prefira aproveitar o vale tudo da orgia para sair do armário, para praticar o rala e rela na multidão, misturando humores e odores, pisadas e mãozadas, transformando-se em criatura dessultória. Incrivelmente, até pagam – e caro – para participar desse destrambelho. Uns e outros escondem suas contidas vergonhas atrás das fantasias. A sóbria plateia com sorrisos e comentários jocosos disputam espaços nas calçadas, com o filho no cangote, para apreciar os desajeitados e contorcidos, mas ensaiados, rebolados.
Sem dúvida, o carnaval ainda pode ser uma excelente estação da alegria, desde que levado com muita graça, respeito e paz.
*Roberio Sulz é professor universitário. Biólogo, biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]