A castanheira

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Lá pelos anos oitenta, ainda na gestão do General Figueiredo, mais uma vez o Governo Federal se deu conta de que projetos elaborados nos gabinetes de Brasília, sem conhecimento da realidade local, nem sempre funcionam.
Assim ocorreu no caso dos ousados projetos de colonização e assentamento às margens da Rodovia Transamazônica. O propósito era ofuscar a concepção popular – em credibilidade crescente – da inutilidade daquela rodovia. Dizia-se pejorativamente que ligava o nada a coisa nenhuma.
Importante lembrar que essa obra custou uma baba aos cofres públicos, inclusive consumindo dinheiro sacado dos fundos da previdência social. Superavitários àquela época, hoje, falidos. Como de praxe, grande parte da grana serviu para alimentar os gordos e famosos propinodutos. De causar inveja aos atuais.
Costume antigo, mas só descoberto pela mídia – e tido como novidade criminosa – na última década, quando perderam assento nos gabinetes do poder os que sabiam fazer isso sem deixar rastro. Sempre encobertos com ajuda e conivência das grandes empresas de comunicação e dos interesses internacionais.
Pois bem (ou mal!), os assentados da Transamazônica – a maioria nordestinos – estavam regressando em grande massa às suas origens. Largavam tudo para trás e ainda se benziam por terem adotado a decisão. Esse fenômeno atingia não apenas os assentados na margem sul do Rio Amazonas, mas igualmente os assentamentos no lado norte, mormente, os localizados à margem da Rodovia Monte Alegre-Óbidos.
Daí emanou o problema que o INCRA – órgão executor dos projetos – não soube responder: por que ocorria tamanha defecção, desistência e abandono de lotes teoricamente bem atraentes por sua dimensão e alguns incentivos financeiros?
A hipótese mais robusta do ponto de vista teórico-burocrático era a pouca oferta de tecnologias de produção agrícola familiar. Ou, ainda, a debilitada capacidade de apropriação dessas tecnologias pelos produtores.
Foi então que se lembraram da Embrapa e dos serviços de extensão rural, nunca convidados a participar na fase de gestação desses projetos. Em busca de solução ao problema, sugeriram a criação de um grupo de trabalho formado pela EMBRAPA (responsável pela pesquisa e produção de tecnologias agrícolas), EMATER-PA (encarregada da extensão e assistência rural no Estado do Pará) e pelo próprio INCRA. O trabalho consistia preliminarmente em verificar “in loco” as condições de vida dos assentados. Investigar sobre seus aperreios frequentes, dificuldades comuns, nível de satisfação, perspectivas, sugestões para reparar os fatores negativos etc.
Senti-me honrado ao ser indicado para liderar o grupo, na condição de representante da Embrapa.
Começamos por Altamira, PA, visitando assentamentos localizados a leste. Em seguida direcionamos a oeste. Visitamos inclusive a quase desativada usina alcooleira Abraham Lincoln. Pernoitando precariamente por um par de noites, chegamos a Vila Presidente Médici, hoje Medicilândia. De lá alcançamos a margem oriental do Rio Tapajós. Retornamos e pegamos o trecho da Cuiabá-Santarém, que nos levou a Santarém. Descansamos um dia e locomovemos de avião até Monte Alegre. Desse ponto em diante visitamos os assentamentos à margem norte do Rio Amazonas.
Este resumo não cobre integralmente todo nosso deslocamento, tampouco detalha a riqueza e importância de nosso trabalho. Foram três semanas de intensa atividade. Com pouco descanso.
Essa experiência ampliou em muito meus conhecimentos sobre a região amazônica. Já os tinha em bom nível, graças ao permanente acompanhamento dos programas de pesquisa da Embrapa voltados para o trópico úmido (levantamento, identificação para efeito de aproveitamento e formatação de sistemas de produção sustentáveis).
Jamais conseguiria adensar minhas observações e emoções no diminuto espaço desta crônica. Destaco, todavia, um especial detalhe que me comoveu nessa missão: as solitárias castanheiras. Pobres criaturas, aqui e acolá na imensidão das áreas devastadas. Como que abandonadas singularidades. Algumas tombadas, outras de copa minguada. Triste paisagem vista da caçamba da caminhoneta onde eu preferia viajar – mesmo sob chuva – para não perder vista dos detalhes ambientais.
Ofereci carona na caçamba do veículo a um cidadão que, pela beira da estrada, ombreava pesado saco de milho. Já a bordo, perguntei-lhe sobre as castanheiras abandonadas no meio da vegetação derrubada. Com os olhos marejando, declarou-se recém-assentado, mas ex-catador de castanhas-do-pará, e explicou quase soluçando: “a castanheira não consegue viver sozinha. Morre de solidão e tristeza. Na derrubada da mata é proibido cortar castanheira. Agora, eu pergunto: de que adianta salvar a castanheira se acabam com todas as outras árvores, que lhe fazem companhia e garantem sua vida?”
Mais tarde viria saber as razões de interação ecológica essenciais à vida daquela planta. Recorri a passados ensinamentos acadêmicos: “os parasitas são eficazes quando não matam seu hospedeiro. Controlados por seus predadores, garantem a convivência sem matar seu hospedeiro. Sem controle, matam e terminam matando a si mesmos”. Pensei com meus botões: os parasitas sociais bem que poderiam conhecer um pouco da essencialidade dessas inter-relações ecológicas para forjar mais justas as condições sociais impostas a seus explorados.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opçã[email protected]