A Cachaça Filosófica – Conto (Almir Zarfeg)

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Todo mundo que frequentava o “Bar do Bigode” era testemunha daquele acontecimento: depois da segunda dose, o Freitas virava outra pessoa, ficava fora de si e discursava qual candidato às vésperas das eleições.

– Eu sou o bêbado da vida e, doravante, o modelo para uma nova geração de alcoólatras pós-Bill Wilson.

Assim o Freitas articulava o advento de uma nova classe social, totalmente movida a álcool e da qual, evidentemente, ele seria o fundador e chefe supremo.

Como era um cidadão comum que mal sabia rabiscar o próprio jamegão, cabe aqui uma dúvida: donde vinha aquela sabedoria exibida por ele? Teria feito algum pacto com o demo em troca daquelas ideias? Ou a inspiração para aqueles repentes geniais tinha outro endereço: a boa e velha cachaça brasileira?

O Freitas ia mais longe ainda:

– Eis que um novo tempo há de chegar para nós, ocasião em que o nosso movimento assumirá proporções gigantescas em todos os níveis. Quando, finalmente, seremos uma classe coesa e inexpugnável…

No entanto, passado aquele acesso intelectualista de grandeza (vamos dizer assim à falta de uma expressão melhor), o que se verificava depois de uma boa noite de sono, o Freitas voltava a si, a seu normal e – incrível – não se lembrava de nada do que havia aprontado. Só uma baita ressaca denunciava o porre da véspera:

– Ai minha cabeça… – E preocupado: – O que está acontecendo comigo, meu Deus? Tô ficando doido de vez?

Como se vê, o Freitas tinha motivos de sobra para estar muito preocupado, ultimamente. Por isso, devido aos últimos reveses, alguma providência teria de ser tomada o quanto antes, sob pena de ele ser tomado por louco ou coisa parecida.

– Muito simples, meu bem.

A ideia de Maria, sua mulher, era elementar: ele devia parar de beber – e já. Em vez de tomar aquela “cachaça filosófica”, como o fenômeno já era conhecido na redondeza, ele precisava voltar para casa mais cedo. Agindo assim, mataria dois coelhos com uma cajadada só: evitava o vexame daquela situação incômoda e, de quebra, economizava uns tostões pro leite do Freitas Júnior, caçula que tinha a cara do pai.

Mas o Freitas se opôs terminantemente:

– Minha birita é sagrada, ora essa!

– Desse jeito, home de Deus, ocê vai ser tido e havido como lôco varrido. Pense bem.

– Que lôco, que nada, Maria. Não é d’agora que eu bebo. Bem antes da gente se casar, eu já tomava as minhas lá no Bigode, da abrideira à saideira, se alembra? ‘Eu bebo sim, estou bebendo, tem gente que não bebe e está morrendo…’” – O Freitas já repetia o refrão da famosíssima canção que fazia apologia do álcool e derivados.

Portanto, estava mais que decidido: não iria abrir mão do único prazer que a vida lhe proporcionava, ao lado da mulher e dos sete filhos, é claro. Ia beber sim, mais comedidamente, não como daquela vez quando chegou ao cúmulo de tomar sozinho um quarto de litro de Caninha 51 de uma assentada! Tomaria só algumas doses, sem exagero. “Homeopaticamente”, como o próprio Bigode havia sugerido, falando difícil, na esperança de não perder o cliente tradicional.

Mas – diabo! – o fenômeno voltava e agora com mais frequência e eloquência. Era a coisa mais previsível do mundo: depois da segunda dose, a metamorfose se apoderava do Freitas mais implacável ainda e com uma plataforma de fazer inveja aos maiores demagogos do horário eleitoral. Era aritmético: 1, 2 e… pimba!

– Seremos os bêbados mais felizes do Brasil e com direito à melhor pinga do mundo. Não a água-que-passarinho-não-bebe que está mais para álcool hidratado, vendido nas drogarias e demais casas do ramo, que ataca facilmente o fígado dos nossos amigos, causando hepatite e toda sorte de cirroses. Aliás, estão servindo por aí metanol no lugar da pura caninha da roça. É ou não é um absurdo, companheiros?

Os amantes da moça-branca, já formando um círculo em volta da mesa a que o nosso ébrio nota dez costumava se sentar, eram todos ouvidos.

O Freitas, agora, num tom professoral:

– Pois bem, companheiros, ninguém é feliz, sabem por quê? Porque está tudo errado, a começar pela qualidade da aguardente de hoje. Depois há o desrespeito com a nossa classe. A bem da verdade, será mesmo uma classe? Em sendo, quais os nossos direitos? Quem nos representa lá em Brasília? Quem luta por nós?

No geral a turma da branquinha apoiava explicitamente aqueles discursos, até porque já estava pra lá de Bagdá, ou seja, tinha excedido igualmente na dose. Depois, erudição à parte, aquilo era um belo espetáculo de se ver, ali no botequim. E todos aplaudiam as performances do Freitas, ainda que ignorando trechos importantes daquele programa revolucionário e, ao mesmo tempo, vibrando com tudo que havia de patético naqueles improvisos etílicos. Como que possuído pelo espírito da água de cana, morto de bêbado, o Freitas, inexplicavelmente, atraía cada vez mais com sua retórica afiada e voz firme, enquanto a plateia aplaudia, ria e se divertia à vontade. Sóbrio, do outro lado do balcão, o Bigode incentivava o show, de olho na gorda féria que, diga-se de passagem, se transformava num negoção.

Mas sucedeu que, numa sexta-feira em que o sujeito já se levanta da cama com o convite à bebedeira impresso no canto do galo, o Freitas se dirigiu ao boteco, como de costume, decidido a saciar o desejo quase incontrolável de experimentar uma temperada à base de jenipapo, que o Bigode sabia preparar como ninguém. O Freitas não era macho para resistir a tamanha tentação…

E metia a ronca nos políticos do Brasil, citando-os nominalmente, desde os vereadores dali, até os deputados mais desconhecidos de Brasília: todos uns corruptos, uns filhos da mãe, uns inimigos figadais que, uma vez eleitos, traíam a confiança de seus eleitores. Dizia que iria escrever um manifesto político intitulado “O presidente et caterva”, em que denunciaria todos os políticos da República Federativa do Brasil, um por um, como os verdadeiros inimigos do povo brasileiro, notadamente do povo cachaceiro.

Superexcitado, o embriagado número l da pátria atinge o clímax do discurso. Agora ele se prepara para soltar a frase revolucionária, causa e razão de sua campanha vitoriosa que, sem dúvida, vai parar nos compêndios de História do Brasil…

– Bêbados de todo o Brasil, uni-vos!

Eis que, subitamente, entra no barzinho um polícia, desses que fazem pouco caso de tudo e de todos, desses que personificam a própria ordem e o progresso. Entra e, depois de bebericar uns dois dedos da Nega Fulô, de dedo em riste apontando o Freitas, dá início ao seguinte interrogatório:

– Que história é essa de revolução, seu Platão?

– Nem Platão nem Bill Wilson, simplesmente Freitas.

– Não tente me engabelar, seu revoltado, que sou a Lei e, em nome dela, preciso saber toda a verdade, compreende?

– Pois não, companheiro.

– Para com esta história de companheiro. O senhor pode ser tudo, filósofo, cachaceiro, o diabo! Agora, faça o favor, não me considere seu companheiro.

– Nada de filósofo, apenas revolucionário e, como tal, pretendo fazer muito pelos pinguços do país. A propósito, se me permite a intimidade, o companheiro parece apreciar uma boa birita.

– Hein?! Dispenso a intimidade. Exijo respeito, que sou autoridade.

– Então o companheiro é do tipo que só bebe socialmente…

– Já disse e repito: dispenso a intimidade. Além do mais, se bebo ou deixo de beber, o problema é só meu. E minha paciência tem limites… – O militar já ensaiava mentalmente uma ordem de prisão, quando o Freitas protestou, quase gritando, atraindo para si a atenção dos presentes.

– E a verdade, hein? Eu tenho a verdade – e voltando-se para o Bigode:

– Desce duas autênticas águas-bentas, companheiro.

Em seguida, passou a elogiar o destilado nacional como jamais alguém fizera, alçando-o à categoria da tequila mexicana e do cognac francês. Não satisfeito, passou a bombardear seu interlocutor com uma infinidade de argumentos do tipo “Você sabia?”.

– O caro companheiro sabia que o Brasil produz 1,3 bilhão de litros de cachaça por ano, gerando um negócio de 1 bilhão de reais?

– Não.

– Sabia que os mais de 33 mil alambiques espalhados por todo o país são responsáveis por 120 mil empregos diretos?

– Não.

– Sabia que, na cidade cearense de Maranguape, existe um museu dedicado exclusivamente à cachaça, no qual se encontra o maior tonel de que se tem notícia, com capacidade para 374 mil litros?

– Sinceramente, não sabia.

– Então, provavelmente, o companheiro desconhece também que a caipirinha de pinga foi eleita o drinque mais quente do século XX!

– ?

Foi assim que o Freitas conquistou seu aliado maior, o Engels para a causa da cachaça tupiniquim. O mesmo que há pouco se mostrara conservador e comedido, agora se revelava revolucionário e um ótimo copo. A prova de iniciação se deu ali mesmo: sob aplausos, tintins e vivas, o entusiasmado policial entornou – de um gole e sem fazer cara feia – uma dose tamanho família de Caninha 51, repetindo por três vezes o slogan “uma boa ideia”.

– À saúde de todos os cachaceiros do Brasil! – brindaram os presentes.

O resto da noite foi só alegria. Afinal, aquela conversão merecia mesmo um brinde à altura, regado com a melhor bebida destilada do mundo. A revolução ficou adiada para outra oportunidade, mas aquele 13 de setembro ficaria para a história como o Dia Nacional da Cachaça.