Vai um hambúrguer aí?

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Quase inimaginável na década passada, comer-se um hambúrguer gerado em laboratório. A não ser para quem viu – e se realizou – com a ficção cinematográfica “Soylent Green” (“No Mundo de 2020”, título brasileiro). Produzida em 1973, tem no elenco além de Charlton Heston, o extraordinário Edward G. Robinson.
A ficção é ambientada no ano 2020 – ano, hoje, já apitando na curva de chegada. Narra uma bizarra solução encontrada para alimentar a população global da época, dramaticamente numerosa. A alternativa foi aproveitar e processar, junto a outros ingredientes, a carne cadavérica de humanos e outros animais e, assim, distribuir essa secreta gororoba à população sob o rótulo de Soylent Green. Não difere muito da produção atual de salsichas e embutidos. É bom saber que estes são emprenhados de carne de galinha poedeira descartada – quiçá doente – mas, sempre temperada ao gosto dos jovens.
O filme era e continua sendo duro de se ver. Dá aquela travada geral no estômago de qualquer mortal, por sua virtual participação – ativa e passiva – na história. Provavelmente, deve ter lançado milhares de almas à órbita vegetariana.
Mas, não é que o hambúrguer biônico passou a existir!  Foi apresentado ao público com a pompa de um reforço atlético do Barça. Entrou para a galeria dos troféus das artimanhas científicas.
Não faltaram ao lançamento holofotes e lentes, inclusive as de contato. “Que gracinha!” Reagiriam assim, as socialites desavisadas do que se tratava. Os viciados em filme de terror fixar-lhe-iam temerosos olhares, aguardando para qualquer momento, vê-lo se contorcer, crescer e virar um big monstro.
Mas, o boi ralado de proveta parecia mesmo era um amontoado de miolo fresco, daqueles preferidos pelo Doctor Hannibal Lecter. Ou um patê de minhocas…
Cheirado, mastigado e engolido, não ensejou nenhum “hummm” de Ana Maria Braga. Pelo contrário, a “gourmet” que o provou torceu o nariz e franziu a testa. Por um triz, não o regurgitou. Para se justificar e manter a pose, disse que faltou gordura.
-“Será qui bresta bra vazê quibe?” Perguntaria o gordo cozinheiro árabe.
-“Cru, nunca! Ich, me dá abuso”, observaria seu auxiliar de cozinha, cearense.
E o preço da coisa? Setecentos e tantos mil dólares por aquela mísera rodela. Dava para comprar uma gorda boiada na invernada. Transformá-la em churrasco para milhares de pessoas e ainda sobrava troco para o vinho de acompanhamento.
É bem verdade que esses hambúrgueres que se agasalham entre as bandas do pão nosso de cada dia – da esquina aos espelhados “Mac’s”- também não são carne que se cheire. Desagradável é descrever o que se sabe deles. Mas, estão aí para satisfazer aos que preferem ser enganados pela grife à certeza do inconfundível feijão-com-arroz.
Parece que a intenção da ciência, nessa área, é substituir o boi e os animais chamados conversores de proteína alimentar por sintetizadores artificiais. De tão remota a vantagem, difícil é antevê-la. Mais próximo – quem sabe? – algo em favor dos veganos, que, no fundo, se babam por uma picanha, mas a rejeitam sob a alegação do sofrimento do animal abatido.
Na linha de produção da proteína animal sintética, já se conhece o leite em pó produzido desde os anos oitenta pela ICI da Inglaterra fazendo uso de bactérias conversoras. Pena que ainda não conseguiram ajustar o processo industrial para chegar a custo de produção competitivo com a vaca.
Os melhores resultados voltados para a produção sintética de proteína animal estão no universo dos micróbios. Não é novidade a produção sintética de fármacos e reagentes de base protéica.
Também a engenharia biomédica tem alcançado surpreendente sucesso na produção de próteses, a partir de cultivo de tecidos “in vitro”, bem como na obtenção de ligas e formas anatômicas biológicas.
Dá para afirmar que a produção de carne sintética, sem usar o animal conversor, não é coisa para já. Ainda falta conhecimento refinado para compatibilizar a fisiologia animal “in vivo’ com a “in vitro”. A clonagem já é factível, mas ainda coberta de incertezas e a custo muito alto. As previsões econômicas não ajudam quando se trata de resultado em horizonte tão distante. Por isso, o segmento de produção de alimentos de origem animal evolui mais rapidamente sobre os produtores biológicos, isto é, no melhoramento dos processos naturais e menos nos procedimentos tecnológicos artificiais.
O boi, pois, não está ameaçado. Pode continuar pastando tranquilo e bonito. E o galo ainda cantará bem alto no terreiro.
A Embrapa, também, não precisa mudar. Nem de ramo nem de rumo. Deve, contudo, garantir que no ano de 2020 não se concretize a fantasia de um Soylent Green alternativo, tendo em sua mistura, essa coisa que apareceu na TV.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]