A Troia de Boró

416

Por Roberio Sulz*

Lembra-se de Boró? É aquele humilde brasileiro, de cultura elementar, que acompanhava a esposa cursando pós-graduação na área de engenharia biomédica na Universidade de Minnesota, Minneapolis, Estados Unidos.

Sem falar nem entender patavina de inglês, sob um frio de arrepiar arame farpado, predominante na maior parte do ano, passava dias dentro de casa. Matava o tempo agarrado a sua viola cantando músicas do nosso seresteiro tradicional. Apesar da diferença cultural, era benquisto na roda de brasileiros, a maioria estudantes na área da saúde.

Pedro era-lhe o mais chegado. Curtia o jeitão caipira de Boró. Sempre que possível, o levava ao laboratório onde costumava esticar a jornada acadêmica até altas horas em seus experimentos. O silêncio do ambiente era quebrado com fantásticas histórias, contadas sob a peculiar versão tosca de Boró.

Certa noite, já passando das dez, Boró espantou a ameaça do sono com mais uma das suas. Declarou-se impressionado com a história de Helena de Troia. Aproximou-se de Pedro e falando, como se fosse para ninguém mais saber:

– Ô mulher bonita, Pedro. Só você vendo. Ela no barco, com os cabelos louros a balançar, era lindeza pura!

– Então, você conheceu a Helena de Troia? Como?

– Uai, sô. Foi no filme que eles passaram lá em Itaúna. O cinema encheu de gente, porque era primeiro de maio e a prefeitura deu ingresso a vontade.

– Então prossiga, Boró.

– Eu já sabia mais ou menos a história dela, contada pelo professor Nastácio, numa festa da escola de Galego, meu filho, onde fui cantar para as crianças.

E continuou: “Na cidade onde Helena nasceu, Esparta, o povo achava que belezura igual àquela só podia estar plantada na filha de Deus. Seu pai de carne e osso era rei da cidade. Nem se importava com essa fofoca. Achava era bom ter uma filha de Deus. Mas o que ele não aguentava mesmo eram as ameaças de um tal de Menelau, grego brabo de outras bandas que usava seu grande exército para tomar todos e tudo que queria. Um dia decidiu invadir Esparta. Todo mundo, na feira, dizia que era por conta da moça bonita. Tomou na ‘mão grande’ Helena e, de lambuja, o trono de Esparta.

Mas, para ela, Menelau não funcionava, não dava no couro. Helena passou a entregar-se a qualquer cabra boa pinta que amarrotasse seus lençóis, às escondidas. Páris, filho do Rei de Troia, assanhou-se todo ao saber dessa franquia”.

– E como Páris chegou até ela? Indagou Pedro e Boró deitou falação:

“Páris, quando menino, era muito mimado. Tinha muitos irmãos, mas era o preferido, o xodó do papai. Cheio de gosto desde criança. O que Páris desejasse, o pai dava. Se não, ele gritava, batia o pé e fazia calundu. Deitava no chão e esperneava até conseguir. Seu quarto tinha brinquedo para todo lado; de madeira e de barro, feitos por artistas pagos só para atender ao prazer do moleque. Dos brinquedos, os que ele mais gostava eram os cavalos. Corria pelo palácio puxando seus cavalinhos de madeira em cima de tábua com rodinhas. Mesmo depois de adulto, vivia cercado de estátuas de cavalo.

Páris pediu ao pai para enviá-lo até Esparta. Queria porque queria conhecer Helena.  Vendo o pai com má vontade, fez um calundu daqueles. Urrou, bateu pé, assanhou o cabelo, até mordeu o pescoço de uma empregada que riu de sua frescura. Sem jeito, seu pai inventou uma desculpa e mandou Páris a Esparta, falar com Menelau, para conseguir um tratado de paz. Rapaz tinhoso e metido a bonito, assim que chegou, já foi cheirando o cangote de Helena e a convidando para fugir com ele para Troia. E ela topou. Pegaram o barco e saíram no escuro da noite. Chegaram em Troia, fizeram aquela farra. Com carneiro, leitoa à pururuca e vinho a vontade. Tinha até torresmo.

Quando Menelau bateu a mão de lado e não achou Helena na cama, ficou fulo da vida. Juntou todos os meganhas gregos e, de arco, flecha, estilingue gigante, daqueles que atiram pedra, bola de fogo etc., foram a Troia retomar Helena. Não conseguiram. Troia era bem guardada. Cercada por altas e fortes muralhas, além de ter um exército bom de briga e com atiradores de elite.

Vendo que não podia entrar na cidade, Menelau, sabedor da paixão de Páris por cavalos, bolou uma treita. Mandou fazer um cavalão de pau com a barriga bem grande e oca, onde emprenhou um monte de soldados. Os gregos chegaram ao portão de Troia e, confessando-se derrotados, entregaram o cavalo de presente aos troianos que o puxaram para o interior da cidade. Páris à frente do grupo.

Naquela noite, a farra de comemoração correu solta. Parecia até que tinham ganhado a copa. Os gregos alojados na barriga do cavalo aguardaram todo mundo ficar bêbado para ser paridos e desfechar covarde ataque aos troianos. Abriram os portões e deixaram o resto do exército de Menelau entrar. Mataram foi gente, até o próprio Páris. Helena viúva, mas, ainda fogosa, agarrou-se logo ao irmão de Páris. Mas, quando a barra pesou e Troia foi definitivamente tomada pelos gregos, ela rapidinho voltou para os braços de Menelau”.

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]