Shira Surpresinha

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roberio-sulzNos primórdios de Brasília, a fronteira do Distrito Federal com o Estado de Goiás abrigava um verdadeiro “cinturão do meretrício”. Mais adensado na saída para Belo Horizonte, onde hoje se situam as cidades de Valparaíso e Novo Gama.
As casas só não funcionavam às segundas feiras. Afinal, as meninas eram de ferro, mas nem tanto. De terça a domingo o agito era permanente, num crescendo à medida que se aproximava o fim de semana. Sábado, os salões de dança abarrotavam-se e os corredores eram tomados por frenético vai-e-vem. Faziam-se dezenas de “retoques de maquiagem” por noite.
As boates Veneza e Sete Quedas eram as mais amplas e visitadas. Disputavam o freguês “top”, aquele que fazia questão de ostentar o litro de uísque 12 anos com baldinho de gelo na mesa. Letreiros luminosos e multicoloridos piscavam freneticamente a noite inteira chamando a freguesia que passava ao largo pela rodovia.
Não eram frequentes as renovações – “turnover” – nas populações de atendentes e fregueses. As novidades, quando apareciam, motivavam festa e adjetivação para valorizar o novo “produto”. Vick, ex-aeromoça da Varig; Kima, recém-chegada da Indonésia; Lody, ex-miss Ribeirão Preto etc.
O freguês, novo no pedaço, também recebia homenagens e cortesias especiais. Festa fingida – mais de temor que de louvor – só para os oficiais militares, que por lá apreciam fardados, medalhados e galonados.
Porém, festa que chamava à atenção era o “début”, a primeira vez, do mancebo. Conduzido por paraninfo – geralmente assíduo decano no estabelecimento – o jovem chegava à casa como centro das atenções do dia. A ninfa, escolhida para o serviço, era a que melhor reunisse, em seus atributos, conhecimentos psicológicos, cuidados de beleza e certa classe.
Por muito tempo guardou-se na memória dos frequentadores o caso da iniciação de Bartô, filho de um coronel do exército, brabo, com físico e cara de estátua e raras palavras macias em seus diálogos. Garotão criado por vó, cheio de “não-me-toques”, Bartô estava sempre em turminhas femininas discutindo o curso de novelas de TV. Não praticava esportes e declarava detestar futebol. Só torcia bisextamente pela seleção brasileira. Assim mesmo, centrado na descrição do perfil físico dos jogadores.
O pai amargava olhar para o filho e tirar conclusões. Chegou a levá-lo para assistir a lutas de boxe e caratê numa academia. Debalde.
Foi aí que o sargento Farias, amigo do coronel e frequentador assíduo de Sete Quedas, sugeriu aplicar uma iniciação no garoto. Ele mesmo seria o paraninfo.
Agendaram o dia, a ornamentação do salão e os comes e bebes. Shira Surpresinha foi a dama escolhida, apesar de novata na comunidade. Poucos sabiam porque Shira não aceitava qualquer cliente. Só os acostumados com ela, os que já a houvessem experimentado na intimidade.
Chegada a noite da iniciação, lá estava pronto o ambiente festivo com Bartô, sargento Farias e convidados especiais. Até a “orquestra” (conjunto musical de 5 componentes, na verdade) preparara algo além dos repertórios de Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Odair José etc.
Bocão, o mais moleque e engraçado dos frequentadores, quando soube do perfil de Bartô e do objetivo da iniciação, não se aguentou: “não conheço remédio para esse mal”. Sabendo da escolha de Shira – sua já conhecida – como iniciadora, vaticinou: “isso não vai dar certo; o tiro pode sair pela culatra”.
Seguindo o rito recomendado, o iniciante começou a dançar com cada uma das meninas da casa e já cumpria metade de suas obrigações, quando Bocão, de molecagem, mandou a orquestra tocar músicas infantis, de Carequinha. Não fosse a pronta intervenção do sargento Farias, o rapaz já descambava para entregar-se ao rebolado.
Enfim, Shira praticamente raptou Bartô, para dar-lhe sumiço por quase uma hora.
A festa continuava, já menos animada, com poucas pessoas no salão.
Bartô retornou à mesa belo e faceiro, com cabelo molhado e cheiro de sabonete. Parecia tudo resolvido. Objetivo atingido, vibrava o sargento! Afinal, eis um novo homem na comunidade! Agora, orgulho do coronel carrancudo. Brindes repetiam-se seguidamente.
Mais impressionante foi a gamação de Bartô por Shira. Passou a insistir em retornar sempre a Sete Quedas. Entre aplausos e louvores, o filho do coronel parecia ser outro homem, agora “machão”, digno das calças que vestia.
A coisa mexeu tanto com a curiosidade dos amigos, que sargento Farias resolveu experimentar Shira. Não foi fácil convencê-la, ante seu forte esquema de seletividade. Mas, considerando a quase doentia curiosidade do sargento para explicar a inusitada transformação ocorrida em Bartô, Shira aceitou.
No rala e rola, o sargento descobriu ser Shira hermafrodita com órgãos masculino e feminino funcionais e bem definidos.
Sargento Farias saiu dali, ele mesmo, com dúvidas de sua preferência, quanto mais da de Bartô.
Shira jamais revelava a preferência de seu cliente. Guardava a surpresa como atrativo e o segredo como compromisso pétreo.
*Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].