República velhaca: 1985-2015 (Cunha é só um sinal da imoralidade cancerígena)

326

Por Luiz Flávio Gomes*

Final – A visão extrativista (todos que podem se inclinam por sugar do Estado e do erário o quanto podem) marca praticamente todas as relações que têm como eixo esse mesmo Estado (que se transformou numa verdadeira  Casa-da-mãe-Joana, que é o lugar em que cada um faz o que quer, onde imperam a desordem, a desorganização, a indisciplina e o desrespeito). As múltiplas variedades do mal se conjugam dentro do Estado brasileiro dominado por elites velhadas: tanto as setoriais bem posicionadas dentro dele (econômicas, financeiras, políticas, administrativas e corporativistas), as quais conformam o poder político-econômico dominante, como praticamente todos os que se relacionam com ele, padecem do mesmo mal, com um destaque nada irrelevante posto em evidência por J. F. Lisboa (cujo relato, de 1852-1858, p. 315-316, continua válido para descrever a realidade nacional de 2015):

“Hoje em dia os vícios e os crimes entonam a cerviz (levantam a cabeça), manifestam-se com descaramento sem igual [como negar a existência de conta secreta na Suíça depois das provas materiais do delito], prosperam e ousam tudo, sob a proteção coletiva dos partidos, excitam-se com o seu exemplo, e triunfam da frouxa resistência da autoridade, ora rebaixada e sem força moral, seja que o descrédito lhe venha da ação dissolvente da difamação sistemática, que é a uma das chagas do tempo; ou da sua própria participação na imoralidade política e privada que só deviam combater”.

Nosso autor maranhense (J. F. Lisboa) chama atenção para dois aspectos da devassidão moral envolvendo a coisa pública: (a) os políticos corruptos contam com o apoio dos partidos (eu iria mais longe: há uma conivência entre todas as elites setoriais dominantes, ou seja, todas elas se auxiliam, se amparam; os arroubos acusatórios ou delatores aos poucos vão se enfraquecendo, em virtude da solidariedade mafiosa que impera); (b) existe tradicionalmente “uma frouxa resistência das autoridades encarregadas do controle do poder político-econômico”, que acabam ou envolvidas nas falcatruas ou prevaricando em suas funções repressivas (deixando que o tempo da prescrição corra como as águas dos rios mansos). Claro que o mensalão do PT, a Operação Lava Jato, o TCU (em relação às contas da Dilma) são exceções. Mas, basta mirar a floresta (do funcionamento da Justiça), não algumas árvores, e logo se percebe a mansidão do poder jurídico de controle (que está mudando, mas muito lentamente).

Adaptando-se o festejado J. F. Lisboa (Jornal de Timon, p. 316) aos nossos tempos, agregaríamos: “Dir-se-ia que o novo sistema de liberdade e independência [o novo nesse caso é a República de 1985-2015], suscitado para corrigir e extirpar os abusos do antigo despotismo e [semi] escravidão [regime militar], se fez cúmplice obsequioso deles, e lhes deu grande e solene entrada na sociedade atual, no meio dos aplausos dos comícios e assembleias, e à grande luz fúnebre da imprensa e da publicidade”.

Mostrando sua imparcialidade, nosso consagrado autor dizia: “Aos que porventura me acusarem de exageração e misantropia [aversão ao ser humano], e arguirem os meus quadros de sombrios e carregados em demasia, poderei responder que tenho por mim o testemunho de quase todos os escritores contemporâneos, órgãos dos nossos principais partidos, dos quais nesta parte só me distingo pela imparcialidade com que afronto e repreendo o mal onde quer que o descubra e ele esteja, quando eles só o veem e condenam nos seus contrários”. Desbastando (ainda que apenas suavemente) o tom moralista de J. F. Lisboa, não há como não subscrever suas repreensões e advertências, que continuam, mais de 150 anos depois de escritas, com uma atualidade impressionante.

*Luiz Flávio Gomes, jurista e coeditor do portal “Atualidades do Direito”. Estou no [email protected].