Qualidade, excelência e santidade

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Parte II – À medida em que percebemos e compreendemos as possibilidades materiais e de gozo sensorial que costumam andar associados ao aperfeiçoamento e à busca da qualidade, passamos a nos conduzir pela vida como adolescentes que descobrem a relação existente entre o tempo dedicado à vaidade e o impacto produzido sobre o sexo oposto.
De uns tempos para cá, como resultado da abertura das economias nacionais, abandonado o modelo da autossuficiência, as prateleiras das livrarias se encheram de livros sobre Qualidade Total e Excelência Empresarial. Investimentos realizados para adequar empresas a exigentes padrões de qualidade vêm se revelando altamente rentáveis. Governos se aplicam em estimular, nesse sentido, o setor privado, e as entidades empresariais se jogam na tarefa, muito mais difícil, de obter do setor público um correspondente empenho em se qualificar a si mesmo. A busca de aprimoramento afeta, assim, até mesmo os governos e a administração pública o que, convenhamos, é bem mais do que estamos habituados a conceber como conduta setorial.
O conteúdo desses manuais endereçados ao setor privado tem alguns denominadores comuns. Entre eles a descoberta de algo que o pensamento cristão – sob outro título e com outras motivações, vem ensinando há séculos: “Assim como a parte e o todo são, em certo modo, a mesma coisa, assim o que pertence ao todo pertence de alguma sorte a cada parte” (Santo Tomás, Sum. Teol. II-II, q. 61 a.1 ad 2). Donde se conclui que a qualidade que pertença ao todo de uma empresa ou organização se faz da qualidade das pessoas que a compõem; em nenhuma organização humana haverá qualidade que não esteja fundada na qualificação de seus membros, em todos os seus níveis. Eureka! A moderna administração descobriu, na porta do estabelecimento e na gaveta do caixa, o valor da pessoa humana. Terá aberto a janela para vislumbrar sua verdadeira dignidade?
A situação que estou descrevendo pode ser percebida em toda parte. Não tem outra explicação a corrida aos cursos de especialização, o grande número de trabalhadores que enfrentam, à noite, longas jornadas de estudo, os cuidados com a alimentação, o êxito comercial das academias de ginástica, a prosperidade dos cirurgiões plásticos e o sucesso de qualquer produto anunciado como capaz de devolver o topete aos calvos. Todos querem “fazer o melhor” de si mesmos.
Ora, esse extraordinário empenho coletivo por “qualidade” e “excelência” parece apontar para um inusitado ciclo histórico de aperfeiçoamento humano. Será mesmo? Estamos, de fato, nos tornando melhores a cada dia? Atingimos elevados padrões de conduta? As pessoas não costumam dar respostas afirmativas ou expressar otimismo quando tais indagações lhes são formuladas. Ao contrário, o que se ouve são manifestações de insatisfação com os rumos da sociedade e de sua instituição fundadora – a família –, empregando-se nessas avaliações palavras e expressões como “desorientação”, “perda dos valores de referência”, “egoísmo”, “individualismo”, “loucura generalizada”, “falta noção de limites”, “violência” e assim por diante. Enquanto isso, nos consultórios dos terapeutas da mente humana o extravagante se converte em rotina. E num mundo de sofisticadas satisfações a felicidade é um devaneio buscado em várias e rentáveis formas químicas de agressão ao sistema nervoso central.
A pergunta que me ocorre, nesse cenário em que uma luzidia presunção coletiva projeta as sombras de profundas insatisfações pessoais, é a seguinte: por que tantos e tantos renunciam à santidade, relegando-a ao patamar das coisas inatingíveis? Se somos tão aperfeiçoáveis em tudo, por que abdicamos à busca do Bem e da perfeição moral e espiritual? Quando se trata dessas dimensões do ser, apesar de sermos cobradores permanentes da perfeição alheia, costumamos afirmar que “somos como somos” e que “devemos aceitar nossa imperfeição”. Continua.
*Percival Puggina (71), membro da Academia Rio-Grandense de Letras, é arquiteto, empresário e escritor e titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia; Pombas e Gaviões; A Tomada do Brasil, integrante do grupo Pensar+.