O jeitinho brasileiro e a desconstrução da cidadania

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A ideia de cidadania, criada na Europa ocidental a partir do século XVII, abriu caminho para a possibilidade de liquidar com os privilégios, leis que atribuíam direitos especiais à nobreza e ao clero. O conceito de cidadania foi um instrumento poderoso para estabelecer a igualdade universal como um modo de contrabalançar e até mesmo acabar com a teia de privilégios que se cristalizavam em diferenciações e hierarquias locais. Se a economia de mercado ocasionou uma grande transformação ao libertar os servos da terra e da propriedade dos senhores feudais, a ideia de cidadania complementou essa revolução, estabelecendo o indivíduo como elemento central e determinante dentro do sistema social.
Esclarece-se, contudo, que a cidadania foi uma construção histórica, não sendo, portanto, algo natural. Nem todas as sociedades desenvolvem a cidadania. As que o fazem são aquelas onde há um individualismo, onde o indivíduo, igual ao cidadão, é mais valorizado que outras categorias sociais (como a família ou a comunidade). Isso significa que são os indivíduos que permitem a formação da autoridade pública pela representação consentida e livre de seus interesses. A sociedade passa a ser vista como um clube ou associação de cidadãos com múltiplos interesses. Todos são iguais perante as leis e a sociedade.
No Brasil, contudo, nem todas as pessoas têm a real dimensão do significado de cidadania, e a palavra cidadão muitas vezes é utilizada em situações negativas, para marcar a posição de alguém que está em desvantagem ou mesmo em inferioridade. Quando se diz: “o automóvel pertence àquele cidadão”; ou “o cidadão terá que esperar um pouco”, sabe-se que o tratamento universalizante e impessoal é usado não para resolver um problema, como nos países onde a cidadania é valorizada, e sim para dificultar a resolução desse problema. De fato, dependendo da situação, dizer que é cidadão brasileiro e que tem direito em uma situação de conflito com a Polícia, por exemplo, pode significar a prisão e até mesmo algumas pancadas.
Tudo isto nos faz entender por que os brasileiros sempre navegam socialmente realizando um cálculo personalizado de sua atuação. Assim, antes de irem a qualquer agência pública, a norma e a “sabedoria” indicam que se deve primeiro descobrir as nossas relações naquela área. Daí decorre a dificuldade da crítica sistemática e consistente a qualquer instituição pelos serviços que ela deveria prestar, pois, esbarra-se sempre nos nexos e laços pessoais e no “jeitinho”. Assim, se a companhia telefônica foi péssima para você, ela foi excelente para mim porque “tenho conhecidos e parentes lá dentro”. Isso torna a crítica social aberta não só algo complicado, mas também suspeito. Porque quem critica é um “criador de caso” ou um “invejoso”. Por isso, vale dizer que a pessoa não tem amigos e foi àquela agência pelo pior caminho no Brasil, o da cidadania.