Loreto no avião

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O agrônomo Loreto participara de reunião técnica em Salvador/BA e, dia seguinte, embarcara no Aeroporto Dois de Julho (nome a ser eternizado!), com destino à capital paulista. Integraria o fórum para discussão da “tristeza cítrica”. A então mais recente preocupação dos citricultores paulistas e, por consequência, dos pesquisadores do Sistema Embrapa e do Instituto Biológico de São Paulo.
Voo matinal procedente de Recife, muitas cadeiras vazias e a perspectiva de um lauto desjejum. Naquela época, a Varig caprichava no serviço de bordo. O assento reservado a Loreto foi o 5-C, no corredor da fila cinco. Tinha cisma de viajar na janela. Acomodou sua maleta no compartimento superior da cabine. Não sem antes sacar sua revistinha de palavras cruzadas. Passatempo preferido nos voos demorados. O assento B, ao lado, desocupado. Na janela, uma senhora de meia idade, bem vestida, a olhar fixamente para uma foto em sua mão. Chorava discretamente. Tão absorta que nem percebeu Loreto.
Em pleno voo, deu-se início ao serviço de bordo, com armação de mesinhas, pigarros, aroma de empada, bolo e pão de queijo invadindo o ambiente. Atmosfera de alegria e satisfação. Tal clima, contudo, não afetava a dama que insistia em mirar continuamente aquela foto, já mexendo com a curiosidade de Loreto. Indagada pela comissária se aceitaria o lanche, acenou negativamente com a mão e a cabeça. Valeu-se apenas de água para tomar comprimidos. Não tardou a reclinar sua poltrona e cair em sono profundo, sem se desgarrar da foto.
De fome satisfeita, Loreto cochilou por minutos. Levantou-se, foi ao sanitário. Ao voltar, deparou com um cidadão aboletado na então desocupada poltrona do meio. Vestia bermuda, tênis brancos e blusa listrada horizontalmente de marrom e amarelo. Tipo turista. Inclinado para a janela, admirava fixamente todo o corpo da dama adormecida. Sem tocá-la, fazia gestos de carinho. Parecia querer beijá-la, mas, não chegava a tanto. Aparentemente embevecido, nem notou a chegada de Loreto.
Os assentos da fileira imediatamente posterior estavam desocupados, o que propiciou Loreto a se sentar na poltrona 6-C (do corredor) a fim de acompanhar, sem incomodar, aquela interessante demonstração de carinho. Algo como tentativa para acabar com a tristeza plantada naquela pobre criatura. Por alguns minutos, ficou atento à cena. Admitira ser o cidadão amigo ou parente muito próximo que, no intuito de agradá-la, evitava admoestá-la, tampouco interromper seu sono.
Loreto voltou a cochilar. Despertou com o anúncio de que a aeronave se preparava para procedimento de pouso no Aeroporto de Congonhas.
Percebendo que o carinhoso cidadão já se retirara, retornou a seu assento original. A senhora em nada melhorara sua tristeza. Loreto resolveu puxar conversa. Indagou-lhe porque tão triste e em prantos ao olhar a foto em sua mão.
Ela sem mostrar desespero, calma e contida, disse-lhe que era lembrança de seu marido. E que não mais o tinha a seu lado como dedicado companheiro. Sem dar espaço a outras perguntas, relatou – até com certa euforia – os bons momentos que curtiram casados, das viagens, das noites de inverno em torno de um fondue com amigos; dos planos e projetos de vida para a aposentadoria, já próxima. Revelou – em voz roufenha – o infortúnio não terem tido filhos. Considerava, porém, como gratificante recompensa a vocação de ambos para a pesquisa médica. Há década e meia, trabalhavam como pesquisadores do Instituto do Coração, em São Paulo.
Enquanto ela falava sobre sua vida, do encanto com a profissão, do prazer de conhecer lugares e pessoas, Loreto esforçava-se para, no contexto da narrativa, descobrir que tipo de separação – enfim – ocorrera àquela abatida figura.
Ao perceber Loreto acompanhando com os olhos o vai-e-vem da foto presa à sua mão, durante a gesticulação, ela lhe mostrou, explicando ser seu marido o fotografado.
Loreto pediu para reparar bem. O cidadão, de corpo inteiro, sorridente, vestia exatamente a mesma roupa: blusa listrada na horizontal com faixas alternadas nas cores marrom e amarela, mais bermuda e tênis brancos. O mesmo que a tentara acariciar enquanto dormia. Sem dúvida, a foto era de seu próprio marido, concluiu Loreto, para si.
A foto mostrava, ainda, o dito senhor como se estivesse dançando uma ciranda, de mãos dadas com duas outras pessoas – aparentemente mulheres – que haviam sido eliminadas do retrato por grosseiros rasgões. Loreto admitiu um rompimento temporário por ciúmes, a razão de viajarem em assentos distantes. Quem sabe, em São Paulo, se reconciliariam.
Loreto ergueu-se e olhou para o setor dos fundos do avião. Viu o tal homem lendo jornal. Tranquilizou-se. Resolveu tentar uma de cupido.
– A senhora sabe onde está seu marido agora?
– Sim. Ele está aqui neste avião.
– Eu sei. Ele veio até este assento do meio enquanto a senhora dormia; quis acariciá-la; só não o fez – creio – com receio de acordá-la. Voltou a seu lugar nos assentos finais.
– Não é possível, senhor. Exibiu-lhe o dedo anelar esquerdo, com duas alianças, e continuou:
– Ele está embalsamado no compartimento de cargas.
Loreto levantou-se mais uma vez, andou por todo o corredor traseiro e não mais achou quem vira antes.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]