Loreto e Klélia

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roberio-sulzEm reunião técnica sobre citricultura, na Embrapa de Cruz das Almas/BA, aproveitamos a noite para saborear as insuperáveis moquecas de siri mole e polvo no restaurante da Pousada do Convento, em Cachoeira.
Loreto, pesquisador da coirmã alagoana da Embrapa, compunha o grupo. Contador de causos, sempre na primeira pessoa, não perdeu a oportunidade. Aguardou o momento da digestão. Relaxamo-nos nas poltronas do saguão e, sorvendo precioso licor de jenipapo, ouvimo-lo.
Em 1982, ainda solteiro, passava dias de folga em Aracaju. Decidira conhecer a Praia dos Coqueiros, do outro lado do rio. Nessa época a travessia ainda era feita por grosseira embarcação que mais lembrava sucata da Marinha Brasileira. O trajeto do ponto de desembarque até a praia era feito a pé, por carroças, precárias charretes etc. Nada confortável. Maré baixa, praia deserta, sem infraestrutura, bar ou restaurante. Sobrou-lhe o prazer de caminhar curtindo o frescor da brisa e os mistérios do infinito.
Naquela andança, lembrara-se de sua inesquecível amada. Klélia, sergipana, radicada em Maceió, professora de Literatura Brasileira, na UFAL. Criatura descrita, por ele, como divinamente linda, envolvente e dotada de prosa macia e carícias suaves. Nos diálogos, exibia um certo bairrismo pelos encantos de Aracaju, especialmente pela Praia dos Coqueiros, onde, às vezes, se recolhia e aproveitava a atmosfera para meditar. Era chegada em práticas espirituais orientais.
Loreto, após duas horas de caminhada, sentara-se à sombra de um coqueiro. Encantava-se com a sonoridade do marulho. Esforçava-se para compreender a participação divina na formação das ondas, das marés, das nuvens e – quando Klélia lhe vinha à mente – dos encontros e desencontros. Poeta, estufava-se de inspiração para poemas em seus futuros cordéis.
Quase adormecido, despertara-se com a figura de uma mulher emergindo das ondas, onde não a vira ingressar, talvez, por cansaço e distração. Ainda bem! Alguém a fazer-lhe companhia naquele vazio aparente, a compartilhar a produção de rastros nas úmidas areias mornas. Não lhe refrearam a timidez nem o estranhamento. Ergueu-se e lentamente dirigiu-se à moça. Contudo, as pernas bambearam e o sangue lhe sumiu da face ao perceber ser Klélia quem ali estava.
Trocas de “olás” e gestos alegres reativaram sentimentos. Lembraram-se dos tempos em que tomavam água no mesmo coco e boiavam de costas, braços dados, na Praia do Francês.
Loreto buscou saber a razão do inesperado sumiço de Klélia, de Maceió, sem deixar endereço ou telefone. Em breve relato, respondeu ter sido vítima de doença grave e altamente contagiosa que lhe obrigava à reclusão praticamente clausural. Já se achava liberta do mal, mas desaconselhada a contatos físicos.
Caminharam juntos até uma tosca cabana de praia. Loreto propôs-lhe um copo do refrigerante que tomava. Não aceitou. Ao despedirem-se, por insistência, ela forneceu seu endereço: rua Engenheiro Pirro, Condomínio Santa Isabel, Morada 458, em frente à praça Princesa Isabel.
– Mora sozinha?
– Em minha morada, sim!
Despediram-se sem que ele visse, pelo menos, a direção que ela tomara.
À noite, de volta ao hotel, não resistiu. Far-lhe-ia uma visita surpresa ao tempo em que a convidaria para jantar. A bordo de seu automóvel, com auxílio de mapa urbano, chegou ao endereço. Arrepiou-se. Tratava-se do Cemitério Santa Isabel, com os portões fechados. Confuso, retornou. Pediu e comeu um pequeno lanche no apartamento. Mirava a televisão sem lhe dar atenção. O pensamento fervilhava em lucubrações. O sono terminou lhe fazendo bem.
Dia seguinte, foi conferir. No Jazigo 458, letras douradas em alto relevo esfriavam-lhe a espinha: “Descanse em paz, Klélia Sampaio”. Adquiriu na floricultura mais próxima um ramalhete de rosas vermelhas mais um cartão alaranjado, onde escrevera de próprio punho, em letras desenhadas: “Obrigado, Klélia”. Depositou o buquê e o cartão carinhosamente sobre a lápide de mármore branco. Corriam-lhe na face duas lágrimas que se juntaram a outras mais quando o cartão alaranjado voou em sua direção, ao sopro de um vento. No verso do cartão, a impressão labial vermelha de um beijo.
Com ela ficaram as flores, com ele o cartão que carinhosamente guardava em sua carteira. Todos os dias, ao deitar e despertar, fazia o sinal da cruz, admirava e beijava o cartão, ao tempo em que proferia oração pela alma de Klélia.
Um ano se passou até que certa manhã a impressão labial no cartão se apagou, restando apenas sua mensagem no anverso. Intrigado, voltou a Aracaju para visitar o túmulo Klélia e tentar entender o fenômeno.
Mais uma misteriosa surpresa. O Jazigo 458 do Cemitério Santa Isabel não mais exibia o mármore branco, mas – sim – um granito cinza-escuro, quase negro. O retrato de uma senhora idosa afixado na lápide informava seu nascimento, data anterior a 1900. O falecimento em 1970, muito antes de Loreto e Klélia se apaixonarem, em Maceió.
Indagou ao administrador sobre o túmulo de Klélia Sampaio. Este revirou páginas e páginas de seus livros de registros e respondeu:
– Este campo santo nunca recebeu o corpo de alguém com esse nome.
*Roberio Sulz é professor universitário; Biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].