Loreto e Ducélia

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Tarde de domingo, na década de oitenta. Loreto aproveitou a fresca da varanda de seu apartamento em Jatiúca, Maceió/AL, para curtir músicas orquestradas. Apreciava gravações de Ray Conniff, Frank Pourcel, Liberace, Glenn Miller, Paul Mauriat, Severino Araújo e outros do gênero. Relaxado na rede, quase em transe para o cochilo, ouviu um som de papel caído a deslizar pelo chão sob o sopro da brisa.
Levantou-se e viu tratar-se de leve envelope. Não continha destinatário nem remetente. Abriu e deparou com mensagem aparentemente escrita há muitos anos, em antigo papel pautado para cartas, já amarelado, com as bordas desgastadas.
A carta, manuscrita com letras arredondadas, tinha o seguinte teor:
“Caro irmão,
Estou certa de que você acreditará em mim e não revelará o conteúdo desta carta.
Certamente já ouviu falar da Praia das Pedras, na Enseada da Tartaruga. Reconheço que poucos pisaram naquelas areias rochosas, protegida por intransitável mangue, repleto de bichos e plantas espinhosas. Mas, descobri uma trilha seca através das falésias, que lhe envio aqui rascunhada. Era nessa praia que me recolhia para meditar e me encontrar com Marty, um elegante Lorde inglês que passava horas contando sobre a vida de navegador nos mares do sul. Sempre chegava à praia remando uma canoa azul de nome “Vicky”. Desembarcava na areia, sem molhar suas elegantes botas brancas. Sempre dentro do uniforme de oficial navegador, com o chapéu preto de três pontas. Dizia habitar com sua tripulação um navio ancorado logo após os arrecifes. Certo dia, aceitei o convite de acompanhá-lo a bordo da canoa azul e visitei sua embarcação. Mostrou-me, no porão encharcado, um baú repleto de peças de ouro e joias – um tesouro – que levaria à Inglaterra tão logo seu navio recebesse socorro e fosse reparado para zarpar. Estava ali ancorado, avariado após colisão com os arrecifes. Fez-me pedido formal de casamento, oferecendo-me como dote todo aquele tesouro no baú. Aceitei e moro com ele em seu navio até hoje. Não nos falta nada. Na verdade, aquele rico baú nos é totalmente inútil. Se você quiser vir buscá-lo, está a sua disposição. Pegue a canoa Vicky amarrada na praia e reme a leste, sob maré vazante, por 20 minutos, seguindo o mapa também anexo. Ao chegar onde moro a canoa tenderá a mover-se em círculos.
Beijos de sua irmã Ducélia”.
Seria, de fato, ele o destinatário daquela missiva? Nunca soubera ter irmã. Apenas dois irmãos mais velhos. Um já falecido de nome Artur e outro, ainda vivo, Gilberto. Curioso, partiu para visitar seus pais em Arapiraca, aproveitando uma viagem de trabalho àquela região do Estado.
– Minha mãe, a senhora conhece ou conheceu alguma parenta nossa de nome Ducélia? Indagou Loreto na primeira sentada à mesa para um café com cuscuz.
– Ducélia era filha única de minha irmã mais velha, Jaíde. Puxou à mãe na beleza, na educação e na dedicação aos estudos. Jaíde, quando solteira, era muito cortejada por importantes alagoanos. Começou um namoro com um ricaço local, produtor de fumo. Engravidou-se de Ducélia e casou-se rapidinho para não ficar mal falada. Ducélia nasceu prematura, mas, nem parecia, por ser bem desenvolvida. Lia muito, especialmente sobre religiões indianas, chinesas e outras orientais. Gostava de meditar. Morreu nova. Dizem que se afogou perto dos arrecifes. O fato é que, até hoje, ninguém conseguiu achar o seu corpo. Depois da morte de Ducélia, sua mãe, parece ter ficado maluca. Passou a não falar coisa com coisa. Afirmava ter visto a filha, ora andando sobre o mar, ora despertando-a durante a noite, para mostrar um tesouro. Disse ter recebido uma carta de Ducélia, convidando-a para a festa de seu casamento num navio inglês. Faleceu depois de, aparentemente louca, beber uma quantidade absurda de água do mar.
Seu Luiz, pai de Loreto, ouviu em silêncio toda aquela explicação. Retirou-se, de testa franzida, para a varanda a fim de relaxar em sua cadeira preguiçosa. Para Loreto, não havia dúvida. A carta tinha Ducélia como remetente. Mas seria ele o verdadeiro destinatário ou um possível meio irmão filho do fumicultor?
Loreto voltou a Maceió. Aproveitou o próximo fim de semana para, seguindo a trilha indicada por Ducélia, alcançar a Praia das Pedras. Lá encontrou, como dito na carta, a canoa azul, com a inscrição Vicky. Encheu-se de medo e eriçou-se com arrepios. Embora fosse maré vazante, faltou-lhe coragem para ir ao encontro de Ducélia. Tampouco para buscar o dito tesouro. Assim, reconheceu-se como o real destinatário da carta.
Mas restava uma dúvida. Por que irmão?
Loreto voltou a Arapiraca. Na chegada viu seu pai deitado na rede da varanda. Sua mãe, como de costume, com um copo de limonada, seu refresco preferido na chegada de viagem. Tomou e recebeu as bênçãos. Sua mãe retirou-se para o interior da casa.  Passado um tempo, aquele silencio entre Loreto e seu pai foi quebrado com a indagação de Loreto:
– Pai, alguém me disse que Ducélia, além de prima, era também minha irmã. Como se explica isso?
– Esse alguém sabe de algo que só eu e Jaíde sabíamos.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]