Jeito de falar

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De vez em quando me dou ao interesse de observar o jeito de falar das pessoas. Anoto expressões idiomáticas, gírias, e, como se diz, palavreados populares. Nunca estudei filologia. Meu falecido irmão mais velho, sim. Era filólogo, professor. Divertia-me ouvi-lo contar hilariantes causos para exemplificar essas idiossincrasias da comunicação verbal. É com ele na cabeça, que me dou a falar desse assunto.
Comecemos com os narradores e comentaristas de futebol, classe hoje prenhe de gente bem remunerada – de fama forjada – oriunda dos gramados, alambrados, quadras e gabinetes de cartolas, mais os desconhecidos ou fugidos da origem. Enfeitam o vernáculo com horrorosas e incompreensíveis “pérolas” que não podem passar sem observação. Na quase totalidade, é parolice oca, alegorizada com pretenso conhecimento técnico. Porém já incorporadas – sem qualquer vergonha – ao dialeto dos altifalantes narradores e comentaristas da mídia esportiva. Eis alguns exemplos:
“Biguá cobrou a falta com maestria, mas, a bola subiu demais”.
Será que a bola, contrariando vontade e perícia de Biguá, manifestou vontade própria de se elevar além do objetivo?
Mais essa, de lascar:
“Ao time tal, faltou bom volume de jogo”.
Volume? Onde se vê volume num jogo? O jogo é evento, fenômeno dinâmico sem forma nem matéria. Não ocupa lugar no espaço, tampouco tem as três dimensões convencionais. Como atribuir-lhe volume?  Seus qualificativos obrigatoriamente têm que obedecer à sua natureza imaterial!
Outra besteira incorporada ao dialeto dessa gente é o “chute de três dedos”. Invenção, certamente, de quem jogou futebol de praia. Mas, mesmo lá no areal, onde se joga descalço, rigorosamente não ocorre chute em que se dispensem os demais dedos do pé.
Os microfones das transmissões esportivas parecem um parque de baboseiras. Algumas importadas, resultando em porcas traduções para nosso idioma: o tradicional “passe” virou “assistência”. Os atletas, nas entrevistas, não mais falam “joguei o melhor que pude” ou “esforcei-me ao máximo” etc. Agora, é “dei o meu melhor”. Tradução do inglês “I did my best”.
Fora das narrações esportivas, também pululam pretensiosas bobagens. Não faz muito tempo, se popularizou a pedante expressão “solução de continuidade” para significar a descontinuidade de algo. Pelos vocábulos usados, o comum era entender-se o contrário, ou seja, que determinado fator promoveu (foi a solução para) a continuidade da ocorrência. De tão confuso, esse palavreado foi esquecido. Graças a Deus!
Mais uma: para os garotões e ninfetas de hoje que nem chegaram a conhecer os extintos telefones públicos – famosos orelhões – fica difícil entender porque “cair a ficha” significa entender algo tardiamente. É que esses aparelhos só completavam a ligação após cair uma ficha metálica introduzida na fenda do aparelho.
Mas, duro de aguentar, mesmo, é o modo chato e vicioso de se ouvir alguém usando exageradamente o pronome “você” ou “tu” (entre os gaúchos) no lugar do pronome apassivador “se”. Muito comum em conferências, aulas e eventos que exigem explicação verbal.
Essa chatice, muitas vezes, pega mal. Numa palestra sobre gravidez de risco, o expositor dizia, dentre outras coisas: “quando você fica grávido por acidente ou agressão…” Provocou risos na plateia predominantemente de homens, médicos e biomédicos. Num programa de TV gaúcho que abordava assuntos policiais, dizia o delegado de bombacha: “Quando tu tem uma arma desse calibre e sabe atirar, tu mata!”
Esse vício de falar virou lugar comum em auditórios, programas de senhoras da mídia e até no pobre povo videota que só sabe reproduzir as bobagens que ouve. Dá para pensar que isso é coisa originariamente de mineiro, onde o pronome do caso reto você virou “cê” e acabou se confundindo com o pronome apassivador “se”.  Quando o mineiro ao fala: “Moço, pra cê lavar bem a égua, melhor cê ir ao córrego”, ele quer falar: “Moço, para se lavar bem a égua, melhor se ir ao córrego”.
E ainda tem mais essa. Inventaram de falar tão rápido – principalmente entre os jovens – que, muitas vezes, a garrulice vira um teretetê desconexo. Sílabas e conjunções são omitidas no afã de aproveitar o fôlego. Nos rádio e telejornais, esse jeito deturpado e deselegante de falar já virou moda. A emissora Bandnews tem uma locutora-apresentadora que, ao falar, lembra mais uma advertência comum ao final das propagandas de remédio ou, pior, uma metralhadora destravada.
E não é só isso. Hoje fala-se aos gritos nos microfone ou fora deles. Parece coisa de locutores de FM e repórteres na transmissão de eventos barulhentos como carnaval, baladas, corridas automobilísticas etc.
Lamentável é ver como essa gente agride, corrompe e maltrata a graciosa sonoridade de nossa língua. Para quem não sabe, reconhecida universalmente como a mais bela dentre todas as românticas para descrever a natureza, suas relações e seus fenômenos. Encantadora quando tonalizada maviosamente pelos que a sabem falar e dela fazer uso para tocar sentimentos.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]