Flashes de memória II

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Teófilo Otoni/MG, 1957 – Meu irmão Oldemar era o tabelião do registro de protesto da comarca. Eu ganhava uns trocados para entregar intimação aos devedores de títulos encaminhados a protesto. A entrega exigia registro de recebimento, com assinatura firmada em livro próprio.
Não eram poucos os que relutavam em receber a intimação. Outros, quando a recebiam, se recusavam a assinar o livro. Mas, eu tinha argumento bem convincente. Se não assinassem a intimação, seria publicada no Jornal “O Liberal” e, talvez, na rádio e no serviço de alto-falantes de Lourival Pechir.
Paschoalino Moderato, um folclórico comerciante de confecções, era conhecido por ser “unha-de-fome”, em bem maior grau que a média normal na cidade. Quando faleceu, descobriram que mantinha inúmeras gavetas com fundo falso para guardar as economias, disfarçadas dentro de meias.
Seu filho, Bruno, era o inverso dele. Perdulário e aventureiro em suas iniciativas empresariais. Mantinha sempre umas três namoradas, fora as residentes na rua Francisco Sá (baixo meretrício). Um dia tomou empréstimo bancário, com aval de seu pai, Paschoalino, para abrir uma empresa de pescados na cidade. Compraria a mercadoria em Caravelas/BA e a transportaria até Teófilo Otoni, de trem, conservada em gelo e no pó-de-serra. Não deu certo. A promissória bancária venceu, Bruno fugiu da cidade e o banco levou a dívida a protesto.
O cartório de Oldemar intimou Paschoalino, como avalista, a pagar ou declarar porque não pagaria. De início, Paschoalino muito hesitou em receber a intimação. Dia seguinte estava ele no cartório, com aquele seu jeitinho humilde e gracioso.
– Seu Oldemar, entenda, a dívida é de meu filho desmiolado. Eu nada tenho a ver com isso.
– Mas, o senhor avalizou a promissória. Sua assinatura está aqui!
– Eu entendo seu Oldemar. Mas, tem que haver um jeito, moço! Eu não posso pagar um dinheiro que nunca soube de sua cor!
– Não vejo saída, seu Paschoalino. Se o senhor não tivesse assinado, não chegaríamos a essa situação.
Paschoalino enfiou a mão no bolso, puxou uma borracha dessas de cabeça de lápis e entregou a Oldemar, dizendo:
– Seu Oldemar, pega isso aqui e apaga meu nome desse papel, por favor!
Oldemar, entre sorrisos, orientou Paschoalino a procurar o gerente do banco e negociar a redução de juros e multas, bem como renovar, com prazo, parte do valor original da dívida.
Belo Horizonte/MG, 1962 – Eu fazia propaganda eleitoral a bordo de um carro alugado com dois alto-falantes do tipo corneta afixados em posições opostas. Dentro, duas baterias automotivas, sempre carregadas, amplificador e um microfone. Lá ia eu, entrando e saindo de ruas, praças e avenidas. Nada de gravação. Era no gogó. Do nascer ao pôr do sol. Água, refrigerante e pastilhas mentoladas para lubrificar as cordas vocais.
A remuneração era o grande apreço que guardava por um dos mais fiéis e importantes amigos que tive na vida: dr. Celso de Rezende Passos, filho do dr. Gabriel Passos, deputado, ministro, meu chefe e respeitável líder. Dr. Celso me tratava e me queria como irmão e eu correspondia orgulhosamente a esse tratamento.
Sobre essa campanha, sintetizemos dizendo, mais uma vez, orgulhosamente, que dr. Celso Passos foi eleito deputado federal por Minas Gerais, sendo o quinto mais votado. Mais tarde, teria seu mandato cassado pela ditadura, como muita gente boa no parlamento.
Voltemos ao carro de som, pelo qual anunciava com entusiasmo as qualidades de meu amigo e candidato.
Final de tarde, já quase escuro, paramos num misto de padaria, lanchonete e bar de agradável aparência. O estabelecimento, bem iluminado, de balcões envidraçados, estendia-se à calçada, larga e repleta de mesas e cadeiras. Intrigava-me o interior do bar praticamente vazio, em contraposição à área da calçada, com todas as mesas ocupadas e gente em pé entremeando os sentados. Tal distribuição de fregueses contrariava a fria brisa das alterosas soprada naquele inverno.
Dispensei o motorista com o carro de som. Dali, eu iria para casa de táxi. Não ficava muito distante da residência de meu irmão onde me hospedava. Dia seguinte, retomaríamos a tarefa, logo após reunião matinal no comitê com dr. Celso e dr. Navarro, coordenador da campanha.
Atravessei por entre aquela gente da calçada. Todos de copo na mão e olhar atento para o alto do prédio defronte. Parei e, curiosamente, fiz o mesmo. Era uma larga vidraça no terceiro andar, coberta com fina cortina que exibia a silhueta de uma mulher aparentemente despida se movimentar. Entendi!
Acomodei-me no ambiente interno, pedi água mineral, chocolate quente e um pastel de queijo.
Entre os garçons, quase todos apressados para atender a turma de expectadores, notei um mais senhor, meio lento, careca e de sotaque tipicamente mineiro local. Indaguei como sabiam os expectadores daquele show.
Ele, em tom de cochicho, próximo a meu ouvido, disse:
– Cá pra nós. Isso tudo é montagem, com a participação paga de uma garota de programa. O espetáculo foi inventado pelo dono deste estabelecimento, um carioca sabido e criativo. Repete-se diariamente e a freguesia só faz aumentar.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]