Flashes de memória I

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Por Roberio Sulz*

Lago Sul, DF, 1999 – Regularmente evitava os fins de semana para compras no Supermercado Pão de Açúcar do Lago Sul. Lá ia eu entrando e saindo dos corredores entre gôndolas e bancas expositoras. De repente, pareceu-me ter visto cair do abarrotado carrinho de compras de uma cidadã um pacotinho de biscoitos (bolachas) do tipo “maizena”. Daqueles baratinhos cujo formato lembra o circuito oval de autódromo americano. Apressei-me em apanhá-lo. Ato contínuo, tentei passá-lo às mãos da distraída compradora.

– Senhora, aqui o pacote que caiu de seu carrinho!

Sob inusitada grosseria, ela se manifestou:

– Essa “coisa” não é minha. Não consumo isso!

Mirei a cidadã de cima a baixo. Exuberantemente penteada, maquiada e perfumada, de saltos altos, roupa da moda, pesadas pulseiras de ouro (douradas, pelo menos), colares e tudo mais que se fizesse necessário à ostentação de riqueza. Parecia a caminho de alguma festa. Abateu-me uma mista sensação de tristeza e desprezo. Pedi-lhe desculpas e desejei-lhe uma boa festa.

Brasília, DF, 2000 – A calçada da plataforma superior da Rodoviária Central, entre o Conjunto Nacional e o Conic, virou um efervescente camelódromo. Ambulantes com suas bugigangas sobre caixotes e lonas no chão a anunciar bonés, camisetas, cds, dvds, meias, fajutos perfumes etc. Quando fiscais do governo apareciam, tudo era recolhido numa impressionante rapidez e transformado em inocentes pacotes de compras. Incólume, só o ceguinho sanfoneiro e seu auxiliar com latinha na mão. Alguns eram mais que ambulantes, espertos enganadores. Por um triz não caí numa armação deles. Fui abordado por um cidadão bem vestido, vendendo perfume:

– Doutor, como vai o senhor? Sua esposa, seu filho?

Respondi a seu aperto de mão com a recíproca amabilidade de seu gentil tratamento. Esforcei-me para lembrar onde o conhecia. Ele se antecipou:

– Tempos atrás fiz um trabalho de pintura na sua residência!

Podia ser verdade, mas não o tinha prontamente na memória.

– OK, muito bem! Agora, você é camelô de perfumes!”

Fiz jeito de quem se ausentava. Segurou-me levemente pelo braço e continuou:

– O senhor e sua esposa foram muito educados e generosos comigo. Nunca vou me esquecer. Por isso, quero que aceite estes perfumes, como presentes para o senhor e sua esposa. Recusei a oferta, doido para encerrar a conversa. Ele insistiu. Colocou os dois frascos dentro de uma sacolinha vermelha de veludo e, com simpático e submisso gesto, entregou-me. Segurei a oferta, agradeci e prossegui o gesto de afastamento. Foi quando ele disse:

– Veja o senhor como é a vida. Larguei o ofício de pintor e tornei-me perfumista. Fiz curso no Senac. Hoje vivo disso aqui. Vida dura, doutor. Descapitalizado, enfrento dificuldades para comprar os produtos básicos. Por exemplo, nada vendi hoje e preciso comprar, antes de mais nada, remédio para as crianças. Dá para o senhor me emprestar cinquenta reais?

Percebi o golpe. Deixei sobre sua caixa a sacolinha e “fui”, sem mais nada dizer. Tempos depois, ficaria sabendo de outras pessoas abordadas com a mesma conversa.

Rodovia Brasília-Belo Horizonte, 1963 – Residia em Brasília e deslocava-me a bordo de um Renault Gordini do ano. Às noites das sextas feiras, sentia saudades de minha mãe. Ainda que nem sempre, de onde estivesse, “batia proa” para BH e pegava a estrada. A maioria das vezes desacompanhado. Não carecia de escova de dentes nem roupas. Por lá, sempre as encontrava lavadas, passadas e perfumadas. Bastava ter algum dinheiro no bolso para o combustível, o café com pão de queijo na estrada e outras despesas comuns de viagem. O rádio sintonizado na Nacional do Rio ou na Tupy de São Paulo. Música e noticiário ajudavam-me a superar o sono.

Certa vez, já me aproximava do posto da Polícia Rodoviária de Três Marias quando me dei conta de ter esquecido em Brasília os documentos do carro e a carteira de motorista. Elaborei rapidamente mil maneiras de como agir se parado por algum agente. Já a menos de duzentos metros, optei por uma saída nem antes pensada. Liguei a seta à esquerda, reduzi a velocidade e parei mesmo antes de qualquer comando. Saltei do carro e, curvando-me, pedi para usar o sanitário. O fingimento dava urgência ao caso. Minutos depois saí fazendo ar de aliviado. Argumentei que poderia ter urinado na estrada, não fosse o assédio que supunha estar sofrendo por um veículo que, vindo de trás, insistia em se aproximar, piscando insistentemente o farol. Numa dessas, permiti sua ultrapassagem, o que resultou em violentas fechadas. Por sorte, consegui ultrapassá-lo pouco antes de chegar ali.

Sentei-me como se estivesse me refazendo de um susto. Perguntado, respondi que meu destino era BH. Indagaram-me se estaria com pressa ou compromisso que impedisse aguardar por meia hora.

– Sem problemas! Respondi de imediato, mas, ainda inseguro. Não tardou, me pediram carona para um colega policial que deixaria o serviço dali a meia hora, indo para Sete Lagoas.

– Ora, ora, um prazer gozar de uma companhia policial. Mas, peço um favor em troca: “que vá dirigindo, uma vez que ainda não me refiz totalmente do susto”.

*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected]