Elementos básicos da Clínica

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mauricio-novaisFinal – A prática clínica médica sustenta-se no procedimento da terapêutica baseada na prescrição medicamentosa. Segundo a interpretação do médico acerca da semiologia, isto é, os “sinais” apresentados pelo corpo do paciente é que a terapêutica será ministrada. A etiologia médica é reconhecida através desses sinais manifestados mediante a sintomatologia. Reconhecida a etiologia, ou seja, as causas do adoecimento do corpo do paciente, o médico (e por extensão o médico psiquiatra) prescreve a medicação apropriada.
Todavia, um questionamento torna-se essencial. Ainda existe uma clínica médica na pós-modernidade? Questionamento interessante em tempos em que não existe mais a figura do clínico que “se assenta à beira do leito do doente” para acompanhar a evolução dos sintomas. Tempos são estes em que o discurso do paciente torna-se cada vez mais desnecessário. Os médicos não mais interrogam os pacientes acerca dos sintomas; os médicos “solicitam exames laboratoriais, clínicos”, emudecendo definitivamente o paciente. O paciente pós-moderno sequer precisa falar sobre os seus sintomas, porque os aparelhos tecnológicos conseguem detectar cada sinapse de seus neurônios. A fala do paciente tornou-se desnecessária. Por isso, o questionamento torna-se essencial. Existe clínica sem que alguém esteja à beira do leito acompanhando a evolução dos sintomas? Existe clínica quando ninguém interpreta os sinais do corpo? Existe clínica onde o diagnóstico é elaborado pela frieza de uma maquinaria eletrônica?
Não existe a menor sombra de dúvida de que essa maquinaria eletrônica desempenha uma importante tarefa na contemporaneidade, dadas as condições de vida na sociedade pós-moderna. Outrossim, não existe qualquer questionamento acerca do papel que a farmacopeia exerce no tratamento de doenças somáticas. O questionamento que nos assalta apresenta-se exatamente no ponto em que a clínica médica (incluindo a psiquiátrica) diverge da psicanalítica na relação clínico-paciente. A relação estabelecida entre o clínico e o paciente constitui-se condição essencial para o sucesso da terapêutica. Todavia, a relação médico-paciente apresenta o entrave no lugar do discurso, enquanto que a relação analista-paciente proporciona a entrada do paciente no campo da linguagem, no qual esse constrói o seu discurso e elabora o seus conflitos intrapsíquicos. A clínica psicanalítica propicia ao paciente as condições necessárias para reconciliar-se com sua história.
A medicina, tomando o caráter científico que ostenta hodiernamente, passou a renunciar à clínica arremessando-a no almoxarifado das recordações hipocráticas. Por isso, o psicanalista Christian Dunker argumenta que a psicanálise opera o ofício de guardiã da clínica, cuja função é lembrar à medicina que ainda existe uma clínica.
A psicanálise, para Lacan, é uma subversão da clínica. Conservando os elementos básicos da clínica (conforme descritos na primeira parte deste artigo), a psicanálise os transforma completamente ao passo que o fundamento da clínica psicanalítica é a linguagem, uma vez que é no setting analítico que o psicanalista desenvolve sua clínica, baseada na escuta da linguagem do paciente à medida que este adquire estatuto de sujeito do seu desejo.
*Maurício de Novais Reis, escritor, psicanalista e especialista em teoria psicanalítica.