Davi, Não. Davino!

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Quem viveu em Cruz das Almas/BA nos anos oitenta há de se lembrar do Bar do Barrão. Uma biboca de porta única, sem mesa, nem cadeiras. De higiene duvidosa, tocada pelo simpático Barrão, com apoio de sua laboriosa esposa. Ficava bem ali no centro, pertinho da praça Senador Temístocles. Era frequentado predominantemente por pesquisadores da Embrapa e professores da então Escola Superior de Agricultura (a primeira do Brasil), hoje Universidade do Recôncavo. Por lá vadiavam também pessoas simples e modestas da comunidade. Lugar democrático, supostamente sem preconceitos. Epa! Tirando a mulher de Barrão, nunca se viu outro rabo de saia por lá. Sabia-se, inclusive, de mulher que ameaçava o marido com separação e outras sanções se ele pisasse os pés naquele “antro”, assim definido por elas. O argumento: por lá só se falava imoralidades e, pejorativamente, das respeitadas mulheres da cidade. Compreendi, com o tempo, porque não via ali muitos de meus diletos amigos e colegas.
Eu gostava. Naquele pequeno espaço cabia mais o moleque e alegre aconchego baiano que pilantragem e maldade. Para quem sabia curtir, era um bom exercício de superação de preconceitos e reafirmação de amizades.
Nada de fino cardápio. O que rolava era carne de sol gorda cozida em pedaços, passarinha (pâncreas), pititinga, torresmo, mocotó, pele e tripa de porco fritas. Sempre duas, no máximo, três dessas opções. As bebidas resumiam-se na cerveja, cachaça, fernet, underberg e vermute. Copos, talheres e pratos duralex sempre arranhados e embaçados. Serviço zero. Cada um pegava sua cerveja, dosava sua purinha, o traçado e se servia do tira-gosto. Quando muito, alguém fazia um prato coletivo para revezar de mão em mão no meio de seu grupo. Barrão e esposa ocupavam-se em lavar utensílios. Esponja lambuzada no sabão, embaixo da torneira, com pano de saco alvejado jogado no ombro. Nenhuma alma a reclamar de nada. Bebendo e comendo com se estivessem todos num refinado banquete.
Uma caderneta encardida de espiral, amassada e sempre úmida era o “caixa” do estabelecimento. Cada freguês criava sua própria página. Ali anotava o que acreditava ter consumido. Isso quando a umidade permitia tirar tinta da esferográfica e o teor etílico sacar algo da lembrança. Apesar disso, nada de calote. Quando em perfeito juízo – cedo ou tarde – os devedores chegavam para quitar e rasgar a página.
Barrão abria seu boteco à tardinha, sol se pondo. Não demorava muito, a turma ia juntando aos bandos. E dá-lhe prosa, predominantemente sobre política. Diferentemente de hoje, as discussões não eram apaixonadas nem cegamente enviesadas. Muito menos agressivas. Com maioria de gente culta e de boa racionalidade, conduziam-se diálogos maduros, chegando-se, no improviso e no bafo alcoólico, a interessantes e valiosas análises políticas conjunturais. Atravessávamos, na época, o governo do último general. Aquele destrambelhado do “prendo e arrebento”, que era mais motivo de chacota que de referência.
Kleber Santos – que Deus o tenha em seu rebanho! – professor de zootecnia, meu dileto ex-colega de muitas salas de aula em Wisconsin, USA, foi quem me apresentou, entre um gole e outro, a Davi. Desculpem-me, Davino. Um divertido e diferenciado alfaiate que recusava ser chamado por seu nome de batismo. Justificava, falando de si mesmo, no passado: Davi era um corno, frouxo, exibia longos e exuberantes chifres plantados por sua mulher. Ele morreu. Hoje só existe em forma de visagem – e de vez em quando – a me atormentar. Sou Davino, irmão gêmeo dele, de cabeça leve e limpa.
Numa tarde, cheguei ao Barrão, junto com Davino, quando a porta de aço se levantava e adentrava o casal proprietário, conduzindo duas grandes caçarolas de tira-gosto. Resolvi puxar papo com “irmão do corno”, ali na porta mesmo.
– Davi aceitava de sem chiar seu par de chifres?
– E não é que era manso, seu menino!
– Davi sabia com quem sua mulher o traía?
– A primeira vez que ele viu, foi com Bob, seu grande amigo. Não sabia o que fazer com Bob. Ameaçou matá-lo, cortar-lhe os bagos, amarrá-lo no mato para morrer de frio e fome e outros castigos. Não teve coragem. Converteu sua raiva na mais profunda amizade.
– E Bob? Arrependeu-se? Que disse dessa atitude?
– Ficou feliz. Pena que não fale. Só late. Passou a abanar o rabo com mais vontade toda vez que se encontravam.
– Segunda vez, foi com Kiko.
– Outro cachorro?
– Não. Era um mulato charuteiro avantajado. Craque em enrolar charuto na coxa. Dizem que, vez por outra, nessa operação, confundia os charutos. E não parou por aí. Foram muitos. Por fim, para o bem de Davi, escafedeu-se. Foi morar em Conceição do Coité com Babalu Peroba, uma negra com jeito de homem forte.
– E você? Com se sente com tudo isso?
– Eu só lamento pelo corno do Davi, que ainda é caidinho por ela. Eu, não! Sou um homem solteiro e feliz. Bebo para livrar-me do fantasma de Davi.
*Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico (B.Sc.) pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].