Cotidiano não ergótico

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O artigo do professor Antônio Delfim Netto publicado na revista “Carta Capital” de 13 de fevereiro último não surpreende pela qualidade, sempre extraordinária, mas, deve ser destacado e lembrado como uma revolucionária aula de razão e lógica, podendo funcionar, inclusive, como cirurgia corretora de estrabismo socioeconômico.  O autor toma o homem, para efeito didático, como “um átomo que pensa, que imita, aprende, inova e transmite sua experiência” e, como tal, passível de ser mais bem compreendido sob os fundamentos da teoria da incerteza e do processo evolutivo no espaço-tempo.  Não é comum, mesmo aos bons pensadores, imaginar a condição do homem como ente dinâmico, não estático, sujeito a mutações diversas, inclusive, racionais que terminam por desenquadrá-lo do “ergotismo”. O processo ergótico, regularmente usado como fundamento racional para proposições proféticas, presume um silogismo simples (ou, um tanto obtuso!) pelo qual “o presente reproduz o passado e esse antecipa o futuro”. Com sabedoria, Delfim Netto propõe a extirpação desse tumor racional atrasado que prejudica as predições mais criativas. Longe do ergotismo, é possível entender o homem como criatura em permanente mutação, especialmente quanto à sua capacidade de apropriar seletivamente e mobilizar conhecimentos para elaborar novos conceitos, ou, sendo assim, sob o processo racional “não ergótico”.

Para justificar a importância do processo racional “não ergótico” em contraposição ao “ergótico” vale a pena entender um pouco mais sobre o princípio da incerteza e a ideia de espaço-tempo, bem como a combinação dessas duas teorias afetando nossa vida, nosso cotidiano. A teoria da incerteza, inerente a toda medição física, postulada por Karl Heisenberg, em 1927, assegura que (interpretação livre deste autor) tudo aquilo que o homem percebe e julga como estático não o é. Pode ser, no máximo, de ocorrência modal, isto é, mais comum, mais frequente e de aparência, constantemente, estática, sendo suas variações desprezadas em favor de generalizações interessadamente enviesadas. Os adolescentes não querem nem saber dessa teoria, quando dizem: “mãe, deixa-me ir, todos meus amigos vão”! Os corruptos também se valem disso: “todo mundo rouba, eu também vou roubar. É normal!”. Ora, o princípio da incerteza, deriva de fenômeno físico quântico e explica que a partícula subatômica nunca está no mesmo lugar, na mesma órbita, com a mesma energia em diferentes momentos de observação, embora possa parecer, pela comum frequência na posição observada. Explica, pois que “o mais observável, o mais frequente não é exatamente o verdadeiro”, é apenas uma aparência, a maneira mais frequente de ocorrência. Transferindo isso para o comportamento humano, o átomo que pensa, que imita etc., que pode não ser verdadeiro nem confiável o comportamento frequentemente observado pelos seres vivos, especialmente pelo ser humano. O estereótipo pode ser apenas uma normalidade vulnerável à variação. A teoria também descarta qualquer confiabilidade nas peremptórias afirmações do “eu sou”. Segundo a teoria da incerteza, ninguém é, embora possa agir, na maioria das vezes, de determinada maneira, porém, jamais se pode garanti-la refratária a alterações. Mesmo não assumindo explicito fundamento na teoria da incerteza, estão coladas a ela a ciência estatística e a cômica “Lei de Murphy”, aquela que dizia: “se algo pode dar errado, esteja certo, dará”.

Como reforço teórico, o postulado da incerteza ainda conta com a ideia do espaço-tempo, uma nova dimensão física proposta por Einstein e explicitada por Stephen Hawkig, que considera a constante alteração, ou, evolução do espaço no decorrer do tempo, levando em conta o deslocamento do universo e, com ele, a terra e, com a terra, os lugares e, por fim, a afetação dos objetos por essa dinâmica, criando constantemente um novo endereço para as coisas, o espaço-tempo.

Assim sendo, os objetos, os seres vivos, o homem, enfim, nunca se repetem no mesmo espaço nem no mesmo tempo. Por que se repetiriam em seu comportamento, em sua razão, em suas atitudes? Einstein admitia a possibilidade de se predizer fisicamente o novo espaço-tempo quando afirmou que “Deus não joga dados”, porém, físicos mais contemporâneos preferem admitir a ideia da casualidade e, consequentemente, da imprevisibilidade, em favor da teoria da incerteza.

No campo das ciências biológicas, as teorias da incerteza e do espaço-tempo contemplam todos os elementos levados em consideração no processo evolutivo proposto por Darwin: novo ambiente, casualidade e incerteza (variabilidade) para se chegar a um diferente ser adaptado a seu novo endereço.  

* Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].