Baixinho e Maneca

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Motivos não faltam para lembrar a boa convivência com Luiz Carlos, o Baixinho, amigo desde os tempos de Calabouço (Restaurante dos Estudantes), no Rio. Em torno do Baixinho e sua graciosa alegria gravitavam pessoas que prezavam o bom humor e curtiam boas anedotas e seus inéditos casos. Continuo com saudades daqueles tempos em que, recém chegado a Brasília, não perdia o contato com os amigos deixados no Rio. Despachava-me para vê-los, pelo menos uma vez por bimestre.
As mesas quadrangulares do Calabouço comportavam 4 pessoas, uma de cada lado em arranjo perfeito para 4 bandejões opostos. Helião e Abelardo Trabuco já estavam à mesa quando chegamos, eu e Baixinho. Ele deu continuidade a um caso que começara a contar ainda na fila de entrada. Participara de um piquenique em Sepetiba, no oeste da cidade. Lugar, àquela época, agradável onde se curtiam ambientes praticamente contínuos de matas, cachoeiras e praia.
Fazia-se acompanhado de quem o houvera convidado, Manuela, ou Maneca para os amigos. Descrita por ele como morena bonita, elegante, animada e de papo agradável. Na verdade, o piquenique era combustível para um novo namorico de Baixinho. Maneca morava em Botafogo, quase vizinha de Baixinho. Embora em salas diferentes, foi no Colégio Maria José Imperial, que se conheceram e começaram o flerte.
Aos domingos, compartilhavam da mesma praia, no Leme e, à tarde, da soirée do Cine Ópera, na Praia de Botafogo.
Baixinho não enjeitou o convite para o piquenique em Sepetiba, organizado pelos colegas de classe da namorada. O ponto de encontro ficou acertado para a entrada da Central do Brasil. Todos já chegados, embarcaram num trem rumo à estação de Santa Cruz. Viagem longa, mais de meia hora. De lá, tomaram um coletivo para Sepetiba.
Com as tralhas, inclusive sanduiches e frutas, acomodadas num canto do salão do clube de pescadores, já com roupa de banho, partiram para conhecer as famosas cacheiras silvestres.
Prevendo possível dispersão do grupo, combinou-se encontro no mesmo clube às quatro da tarde, para retorno. Daí, em diante, Baixinho conta de viva voz:
“Esgotada a curiosidade sobre as cachoeiras silvestres, decidimos curtir a Praia. Não sem antes, passar no clube, pegar dois pares de sanduiche preparados e levados por Maneca em sua sacola. Por uns quinze minutos, caminhamos descalços naquela praia larga e quase deserta. Alcançamos a sombra de uma barraca, onde sentamos, tomamos refrigerante e partimos para tibuns a fim de aplacar o calor.
Saindo da água, pusemo-nos a lanchar, na mesma barraca. Por lá, divertiam-se ainda cerca de vinte pessoas, ocupando algo como seis mesas.
Pedi caipirinha. Ofereci o mesmo a Maneca que recusou alegando não tomar bebida alcoólica fora do ambiente familiar, por não lhe fazer bem, ainda que gostasse de drinques. Não entendi bem o argumento “ambiente familiar”. Mas, deixei pra lá. Falamos um pouco de tudo.
Na minha segunda caipirinha, Maneca pediu para provar. Deu uma golada. Gostou e não resistiu a pedir uma dose só pra ela. Bebeu-a como se fosse água. Não tardou a exibir estranhos soluços e a balbuciar com língua pesada. Senti que o melhor seria pagar a conta e sair do ambiente para evitar vexame. Tentei inutilmente apoiá-la em meus ombros. Urrava e dançava com trejeitos de estar no terreiro de umbanda. Subia e sapateava na mesa, descia e ajoelhava-se na areia. Descabelava-se, impregnando os cabelos com areia.
O espetáculo ganhava plateia não só dos fregueses da barraca como de curiosos atraídos. Joguei-lhe no rosto água gelada de um baldinho de conservar bebida no gelo. Cuspiu-me na cara como resposta. Lembrei-me, então, de um lance visto num terreiro, onde o cambono, portando um tipo de estola e colar de flores, resolveu caso semelhante. Encerrou o encanto participando ativamente da cena: batia palmas, dançava e cantava imitando a possuída.
Pedi ao barraqueiro qualquer coisa semelhante a uma estola. Ele me falou que fitas largas roxas poderiam ser encontradas na floricultura defronte, especializada em coroas para velório. Voei como num salto para lá. Voltei não apenas com uma estola roxa improvisada nos ombros, mas também vestindo coroa fúnebre de flores no pescoço. Nem imaginei com que me parecia.
Assim, passei a cantar, bater palmas e me balançar como parceiro dançante de Maneca. Improvisei uma cantiga e pedi aos presentes para fazer o mesmo. Cantávamos todos: ‘Salve, salve, Maneca linda/ Zêre é fia de pai véi/ Toma bença desse preto/ Senta pra descansá’.
Foi com isso que a levei a se sentar numa cadeira. Aproveitando os adereços ainda em mim pendurados, o clima e o sucesso obtido, coloquei a mão sobre sua cabeça, suavemente direcionei seu olhar para o mar e acrescentei com voz de preto velho: ‘Oia Iemanjá! Ela manda zêre vortá pra casa pra ser feliz’!
Apoiada e cambaleando, chegamos ao clube pouco antes das quatro. Para justificar o estado deplorável de Manuela, informei que ela passara mal, comendo ostra. Tomaria um banho reparador antes de partir”.
Assim, Baixinho encerrou mais um de seus casos.
*Roberio Sulz é biólogo e biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. E pensador por opção. [email protected]