Automutilação: um corte silencioso nos desejos

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mauricio-novaisParte IV – A automutilação representa a operação de um corte, uma descontinuidade, uma espécie de hiato no registro simbólico do indivíduo, posto que tenha como fundamento primordial a angústia. Neste tocante específico, pode-se inferir que a angústia expressa uma falta na semântica do desejo; falta essa que autentica o lugar do desejo na semântica do sujeito, implicando na constituição de uma lacuna subjetiva. Onde devia aparecer o significante essencial do sujeito, surge a descontinuidade simbólica, ou seja, a falta de significação subjetiva. Nesta perspectiva, os transbordamentos sintomáticos no corpo (físico e subjetivo) parecem inevitáveis.
Todavia, as áreas que investigam o psiquismo humano, a saber, psicologia, psiquiatria e psicanálise, bem como as variadas psicoterapias existentes na contemporaneidade, não contam com vasto material epistemológico e metodológico no tocante às etiologias, diagnóstica e tratamento. Sendo limitado o número de estudos publicados acerca dessa crescente psicopatologia na contemporaneidade, torna-se mais desafiador acolher e tratar os pacientes afetados por esses sintomas.
Na esteira das contribuições do psicanalista Contardo Calligaris, afirmamos que “as psicoterapias trabalham sempre no varejo”, não reproduzindo a estrutura casuística sustentada pela clínica médica. Isso quer dizer que nas clínicas psicoterapêuticas a semiologia não exprime a priori as causas do sofrimento psíquico daqueles que se automutilam. Cada caso é tratado segundo suas peculiaridades, na singularidade do discurso de cada indivíduo bem como na relação desse indivíduo com sua história fundamental enquanto sujeito desejante.
Esbarra-se no desejo. Pior, esbarra-se na impossibilidade de articulação do desejo. Portanto, esbarra-se no sujeito atravessado pelo desejo, que não consegue articular seu desejo nas malhas da significação. Mesmo assim, a angústia refere-se a um saber acerca do desejo. Um saber que, não podendo ser expresso através de significantes, silencia a estrutura simbólica e produz cortes na linguagem. Os cortes produzidos na linguagem transbordam-se pulsionalmente no lugar de cortes somáticos expressos, fisicamente, na constituição imagética do corpo do sujeito.
Portanto, o corte expresso no corpo do sujeito não tem como finalidade chamar atenção dos pais, professores ou adultos em geral; não constituem uma “birra” de adolescentes revoltados sem causa, como muitos dizem (não existem números concisos, mas podemos afirmar que a maioria dos casos de automutilação ocorre no período da infância e da adolescência, sendo que muitos ultrapassam essa faixa etária adentrando a vida adulta); pelo contrário, a prática de automutilação objetiva proporcionar alívio à dor psíquica instalada no campo da subjetividade, diz a psiquiatra Jackeline Giusti. “Isso porque o corte, ou qualquer outra lesão no corpo”, completa a psiquiatra, “libera endorfina, mesmo hormônio que dá sensação de bem estar após o exercício aeróbico, por exemplo.”
Mas, isso é assunto para será analisado na próxima semana.
*Especialista em Teoria Psicanalítica, Professor de filosofia no Colégio Estadual Democrático Ruy Barbosa. Coordenador Pedagógico na Escola M. Sheneider Cordeiro Correia