Ah, se fosse eu…

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A expressão “Ah, se fosse eu”… é mais que a reação comum às pessoas que ouvem um caso qualquer e que tem pronta sua própria receita comportamental, dita com ênfase e segurança de quem possui o melhor exemplo a ser seguido pelo interlocutor e pela sociedade. No geral, a receita é uma bufa sem sentido, inexequível e sem boa previsão de resultados, como, por exemplo: “ah, se fosse eu, o faria engolir toda a bebida com copo e tudo!”, ou, “ah, se fosse eu, colocava veneno no café dela!” Na prática, é sempre a antítese do bom senso.  O pior é que essa verborréia faz emergir um egocentrismo enrustido e uma forte pretensão do falante em se emprenhar de razão para emprestar solidariedade. Contudo, a receita nem sempre reflete o real comportamento de quem a prescreve, significa mais uma pretensão de ser o melhor. Mas, o egocentrismo, mesmo escamoteado, costuma vir à tona quando enfeixado coletivamente. E é com desconfiança a toda essa coisa enraizada na sociedade que se instala a preocupação naqueles que buscam uma sociedade mais acertada e mais justa com partícipes menos eufóricos e mais centrados na razão.

É possível que tenha sido essa vontade de uniformizar comportamentos e condenar as “diferenças” a origem e a inspiração para os fundadores dos clubes fechados, da Luluzinha, do Bolinha, do fuzil, dos acólitos, o Rotary, o Lions e outras organizações, algumas mais, outras menos, porém, quase todas, infelizmente, pautadas no sectarismo. Parece que desde que o homem é homem instaurou-se uma batalha para tornar o “próximo” não apenas próximo, mas “igual a si” e, assim, fortalecido na solidariedade forçada, impor aos outros um jeito próprio de agir, de cercear o direito de outro alguém ser diferente. É a imposição hegemônica do pensamento, da mesma opção política, do gosto igual e do que faz moda nos “seletos” grupos sociais. Dependendo do atraso social e das vantagens auferidas aos impostores, o pensamento único pode até se converter padrão legal, ou, religioso a ser obedecido pelos demais e por todos.  O ímpeto fica maior que a razão e parte-se desvairadamente para transformar o mundo em um só partido, em uma só religião, um só pensamento. O sociólogo e pensador brasileiro Vladimir Safatle, em sua obra “Grande Hotel Abismo” e em várias outras manifestações levanta essa bola e a manipula com a maestria de um craque. De tanto explorar o assunto, pode-se dizer que ele criou a “teoria da indiferença”, em outras palavras, a “teoria da não diferença”, assim dita para evitar qualquer confusão com o ato de se discriminar o cidadão, ou, a cidadã pelo isolamento. Essa teoria baseia-se no preceito comportamental de não se esboçar qualquer tentativa de intervenção, corrupta ou não, no comportamento alheio para fazê-lo igual ao seu. É, pois, aceitar confortavelmente o comportamento diferente do seu, exibido por outra pessoa. É não perturbar seu estado de querência, afeição, amizade e respeito só por perceber em pessoa de sua relação social disparidade relativa a seu modo de pensar, a seus gostos e preferências. Não basta repetir o chavão: “respeito o seu modo de pensar e agir, apesar de diferente do meu”. É preciso ir além desse respeito, na maioria das vezes meramente formal, para parecer-se politicamente correto ou para forjar uma descarada cordialidade. Não vale, tampouco, tolerar, resistir e não se abalar com a diferença. É imprescindível não sentir nem alterar seu nível de adrenalina quando se deparar com a diferença no seu próximo. É, em síntese, internalizar e viver a “não diferença”, sem farisaísmo.

Tudo indica que uma nova sociedade pautada na “indiferença”, como conceituada por Safatle, exibiria um perfil mais humano, mais harmônico. Provavelmente, com essa nova maneira de viver, seria reduzido, quiçá, até banido socialmente, o preconceito, seja de natureza racial, política, religiosa, cultural etc. Poderia ensejar, por exemplo, o fim dos grupos e agremiações sectários, das turminhas alinhadas e alienadas; desbancaria a falsa necessidade de mostrar-se idêntico em pensamento a seu amigo para hipotecar-lhe solidariedade. Certamente, promoveria mais liberdade, menos rendição; mais confiabilidade, menos decepção; mais certeza, menos tibieza; mais essência, menos rótulo; mais razão, menos desvairada emoção; mais aproximação, menos exclusão.

É importante, todavia, não se louvar a indiferença como postulado absoluto de ilimitada validade para o comportamento humano a ponto de confundi-lo com desordem, desrespeito, libertinagem ou imoralidade. As fronteiras do bom senso, da legalidade e dos bons costumes, certamente, impedirão os excessos que possam macular ou invalidar a conduta marcada pela desejável “não diferença” nas relações sociais.

* Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].