A festa da alegria

417

“Hoje eu não quero sofrer, hoje eu não quero chorar, deixei a tristeza lá fora, mandei a saudade esperar, lá, rá, rá, rá; hoje eu não quero sofrer, quem quiser que sofra em meu lugar. Quero me afogar em serpentinas, quando ouvir, o primeiro clarim tocar, quero ver milhões de colombinas, a cantar, trá, lá, lá, lá, lá, lá; quero me perder de mão em mão, quero ser ninguém na multidão… lá, rá, rá, rá…”.  Essa linda marchinha de Rutinaldo e Klécius Caldas diz exatamente o que desejava o bom folião nos folguedos de carnaval de outrora.

Ah, que saudades daquela festa da alegria e da contagiante animação levada pelas vibrantes cornetas metálicas: pistões, trombones, clarineta e tubas sopradas por gordinhos bochechudos. Os tambores surdos confundiam-se com o pulsar dos corações. Os salões multicoloridos, com máscaras, serpentinas penduradas e confetes. Um disfarçado cuba-libre, uma cervejinha e olhos atentos aos brotinhos circulando em inocentes trenzinhos. Valeria a pena levar toda essa graça às ruas de hoje, ainda que viesse a ser distorcida pelo som das agudíssimas guitarras, tambores elétricos e da parafernália de luzes e som dos badalados trios elétricos. Só assim não incomodaria tanto o som ampliado a volume estratosférico desses lerdos monstrengos de multieixos. Certamente, seriam bem recebidos e até louvados por um rol de seguidores de todas as idades e saudades. Moços, maduros e os pra lá de maduros, tiroleses, havaianas, colombinas, pierrôs, os árabes de araque, as descaradas baianas louras e barbadas e até as mocinhas menos recatadas do Bataclã saindo pelas ruas a ecoar lindas marchinhas, sambas e frevos! Quem sabe, o lança-perfume liberado sem o propósito da embriaguês. Caramba! Estava formatada a festa da alegria! Mesmo os inconvenientes ambulantes com suas galeotas poderiam continuar a vender cerveja e asquerosas bugigangas alimentícias para os corajosos esfomeados. O que não dá para engolir, de jeito nenhum, são os desprezíveis e improvisados carros com porta-malas abertos e camionetes com painéis repletos de autofalantes, cada um pronto a exibir em maiores decibéis de taquara rachada suas porcarias sonoras. Para quem achava a “afro-bobagem”, característica dos carnavais baianos de ontem, uma deturpação musical, esses ruídos de latas batidas nas traseiras escancaradas é algo além do achincalhe ao bom gosto, é agressão, poluição e perturbação sem limites. Nos ambientes de orla marítima, nos feriados ou, ainda pior, nos dias de carnaval, ninguém consegue mais ouvir em suas casas músicas de seu agrado, tampouco dormir em paz. É um infindável derengo-dengo vindo de todos os pontos cardeais, confusos, sobrepostos, ininteligíveis. Em suma, é um amargo purgante que carece ser contido, pelo menos, para que a overdose não chegue ao cúmulo da troca de agressões físicas, o que termina facilitado pelo abuso na ingestão de bebidas alcoólicas e de drogas diversas. Houve época, e não vai longe o tempo, em que por estas bandas da Bahia, nas cidades praianas, as festas, mesmo as carnavalescas, ocorriam de maneira mais limpa e ordenada: blocos agregando amigos, parentes e gente contente. Até música própria, ou hino, do bloco existia, ensaiada aos montões nos saguões dos hotéis. Tinha até um padre que não perdia a oportunidade de vestir sua sunga e pongar numa camionete – contra vontade do bispo, é claro. E os “caretas?” Gente fina camuflada atrás de máscaras, desafiando os curiosos a descobrir suas identidades. As marchinhas faziam o fundo musical das cabanas de praia durante as manhãs ensolaradas e a criançada se esbaldava na areia, cantarolando ilariê e balão mágico.

Contudo, há quem prefira aproveitar o vale tudo da orgia para sair do armário, para praticar o rala e rela na multidão, misturando humores e odores, pisadas e mãozadas, transformando-se em criatura dessultória. Incrivelmente, até pagam – e caro – para participar desse destrambelho. Uns e outros escondem suas vergonhas atrás das máscaras. A sóbria plateia com sorrisos e comentários jocosos disputam espaços nas calçadas, com o filho no cangote, para apreciar os desajeitados e contorcidos, mas, espontâneos, rebolados.

Sem dúvida, o carnaval ainda pode ser uma excelente opção de alegria, desde que levado com muita graça, respeito e paz.

* Roberio Sulz é professor universitário; biólogo, biomédico pela UnB; M.Sc. pela Universidade de Wisconsin, EEUU. [email protected].