A crise é profunda. Oportunidade histórica para mudanças. Cunha e Renan não assumirão a presidência

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Final – Os brasileiros indignados entraram nessa pauta globalizada desde as jornadas de junho de 2013. Trata-se de algo novo (chamado de movimentismo), que nos revela um panorama de ebulição permanente. É um fermento social de calibre ainda desconhecido. A impaciência com a clássica democracia corrupta (cleptocracia) está chegando no seu limite. A descrença na classe política alcançou patamares impensáveis. A Nova República (1985-2016), também ela marcada pela corrupção sistêmica, encerrou seu ciclo de vida. A população está enfadada (com a política, com os políticos e com as elites empresarias que vivem das pilhagens). Tudo isso tem um significado profundo, que ninguém saberia descrever. Seria uma “democracia sem a política”? Seria uma nova forma de democracia direta?
Para o linguista da Universidade de Roma, Raffaele Simone, o movimentismo é premonição de uma autêntica crise histórica, que sinaliza mudanças radicais; a fase da democracia clássica (no nosso caso, formalista) se esgotou; já estamos entrando na pós-democracia. Os movimentistas rejeitam os políticos (e, agora, também as oligarquias do mercado parasitário). Não querem andar ao lado deles. São, portanto, suprapartidários. Não se agrupam por convicções políticas definidas, sim, por algumas bandeiras generalistas (saúde, educação, transportes, mobilidade urbana, contra a corrupção etc.). A fase é, indiscutivelmente, de transição. O velho modelo democrático corrupto morreu e o novo não nasceu.
Estamos vivendo uma crise histórica, mas não a que foi esquadrinhada pelo sociólogo espanhol Ortega y Gasset. Para ele há crise histórica “quando as novas gerações refutam as convicções da anterior, ou seja, quando fica sem mundo; quando o humano não sabe o que fazer, nem para onde ir; quando não sabe o que pensa sobre o mundo; essa mudança é catastrófica; o humano não tem novo padrão, só sabe que as ideias e normas tradicionais são falsas ou inadmissíveis; sente profundo desprezo por quase tudo que se acreditava antes, mas ainda não possui novas crenças positivas para substituir as tradicionais”.
O que estamos vivendo neste momento é algo completamente oposto ao conceito dado por Ortega y Gasset (na primeira metade do século XX).
O movimentismo planetário é desconexo, pouco estruturado e pode não durar muito tempo, mas é ativo, vibrante, posto que demonstra interesse pela política, rompendo com nossa tendência de desinteresse pela coisa pública. Desde 2013, nunca os brasileiros cobraram tanto dos agentes públicos e nunca censuraram tanto a corrupção das elites políticas e do mercado. A sociedade está mais consciente dos problemas e está sinalizando o que quer.
A Justiça e as instituições, ainda que abaixo do nível esperado, estão funcionando. Nunca (antes do mensalão e da Lava Jato) as elites empresariais prestaram contas intensamente das suas falcatruas. A democracia brasileira está viva e ganhando conotações de democracia direta. As regras do jogo, no entanto, não podem ser inobservadas. Não estamos correndo risco de retrocesso autoritário (apesar de alguns discursos aberrantes).
Há uma nítida intolerância à corrupção, que hoje ocupa o primeiro lugar na preocupação do brasileiro (Datafolha). “Para além de preocupações legítimas de inclusão social e mesmo de estabilidade macroeconômica, o brasileiro hoje não compactua mais com saídas que possam compor com a manutenção de esquemas ilegais e desviantes” (diz o cientista político Carlos Pereira).
Vivemos uma grande bifurcação: promover mudanças profundas (como quer a sociedade) ou “mudar tudo para que tudo fique como está” (como gostariam as clássicas elites poderosas)? Nosso voto é pelas mudanças profundas, a começar pelas reformas legislativas necessárias, como a de prever no art. 86 da CF, de forma explícita, que todos os agentes públicos que integram a linha sucessória presidencial serão afastados das suas funções presidenciais assim que recebida uma denúncia criminal pelo STF. Se isso já vigorasse, Eduardo Cunha, uma vergonha nacional e internacional, há tempos já não seria o presidente da Câmara dos Deputados.
*Luiz Flávio Gomes, jurista e coeditor do portal “Atualidades do Direito”. Estou no [email protected]